Confesso que estava um pouco ansioso por reencontrar a Helena depois de um ano sem a ver. Ela é muito bonita. Tem uns olhos de cristal, azuis, que estão sempre a sorrir ainda que o seu semblante se apresente mais sério, o que não é raro tendo em conta os seus azeites. Não resisti descer até à água, fingindo querer refrescar-me, para cumprimentar os seus pais e aproveitar, objetivo principal, para cumprimentá-la também, quando subisse, ao passar na sua palhota. Quando o fiz só lá estava a irmã com as suas amigas. Não reparei que na palhota ao lado a jovem que estava aparentemente a dormir, de barriga para baixo, era ela. Cumprimentei a irmã, que me respondeu a contragosto, e quando me dirigia para a minha palhota, três casas ao lado, na fila seguinte, a Helena me interpelou, de um salto, para me cumprimentar. Tentei refazer-me do calafrio o mais rapidamente possível para disfarçar ao máximo todas as emoções que se me afloraram naquele instante, ao mesmo tempo que procurava palavras para lhe dizer que parecessem adequadas ao reencontro entre um senhor já entrado e uma amiga da sua filha… E tudo isto com uma plateia imensa, de gente conhecida, a observar a cena, parecendo já adivinhar o enredo que sobremaneira fui tentando camuflar. Acho que disfarcei bem, mas a minha alegria e atrapalhação não escaparam certamente à astucia da Helena. Ela é muito mais do que linda… Que sensação! Que miúdo eu sou. Como pode uma mulher de apenas vinte anos ter este efeito num homem já de meia-idade? Fui para a palhota e sentei-me para me recompor, deixar o coração voltar ao seu lugar, depois de ter descido ao estâmago e subido à garganta. Mais calmo, decidi descer até à água para me banhar um pouco, bendizer a vida, apreciar a beleza da praia e descansar o olhar sobre a Helena apenas um pouco mais. Como se este presente não bastasse, tive a imerecida sorte de poder vê-la descer para também se banhar e ainda tê-la como companhia por alguns minutos, até decidirmos todos voltar para os nossos cómodos. Talvez ela não saiba que me fez ganhar as férias. E eu também não sei que raio de efeito tive sobre ela. Mas deixem-me acreditar que este nosso encontro teve algo que ver com aquele brilhozinho que vi no seu olhar… E é assim que vai vivendo um incorrigível canalha.
Quando me sentei e vi de quem ia ficar ao lado não fiquei logo entusiasmado, mas fiquei curioso. Deve andar pelos quarenta. Muito direitinha, já com o cinto de segurança apertado, olhando em frente, sem grandes movimentações. Apesar de já não ser obrigatório, estava de máscara. Fiquei curioso, é verdade. Fiquei também um pouco despeitado por não se mostrar minimamente interessada na minha pessoa. Já prestes a levantar voo para regressar ao meu querido país, ela começa a preparar-se para a viagem que iria durar apenas duas horas, tempo suficiente para se ficar enregelado caso não se tomassem as devidas precauções. Pelo seu ritual via-se que era uma habitué. Com casacos e camisolas improvisou duas mantas, uma para as pernas e outra para os ombros, até que o desassossego terminou. Da minha parte apenas deslizei até cima o fecho-éclair do casaco. Como eu estava do lado da coxia, a janela era um óptimo pretexto para poder tranquilamente observá-la, embora apenas de perfil. Nem sequer um pouco enviesada a consegui ver. Os seus olhos cor de mel, juntamente com as pestanas e as sobrancelhas, eram impressionantes. Davam vontade de me diluir neles.
Sempre na esperança de que se dignasse olhar para mim acabei por começar a adormecer. Neste estágio dei por mim a perguntar aos meus botões, ou melhor, ao meu fecho-éclair, que seria se lhe desse a mão. Um gesto que estava mesmo ali ao meu alcance. Mais fácil do que pedir um copo de água. Claro que não o fiz. Perante a indiferença às minhas mal disfarçadas investidas o certo era que a coisa não fosse correr bem. Não levaria um estalo, mas de um gesto brusco não me livraria pela certa. Contudo, ainda dei espaço à incerteza pensando como seria se acontecesse o oposto. Se partisse dela a iniciativa de me dar mão. Claro que não rejeitaria a sua mão, com aqueles dedos esguios e delicados, de unhas bem recortadas e desprovidas de pintura. Acho que começaria a pairar como se a aeronave perdesse de repente a sustentação...E continuei este diálogo comigo próprio, maldizendo a Mãe Natureza por não ter promovido maior igualdade de género nas respostas a este tipo de iniciativas.
Quando acordei ela estava com a mesma postura, mas agora entretida com o telemóvel. Fui deitando o rabo do olho para tentar confirmar, com base no que ela estava a ver, se era portuguesa ou não, mas não me dava grandes hipóteses, colocando a mão esquerda de maneira que eu não conseguisse ver nada. Excepto que estava despida de qualquer anel, informação tão ou mais útil do que a que pretendera saber. Do outro lado seguia outro passageiro que esteve quase todo o tempo a dormir, mas que deu para perceber que não lhe era nada. Pensei sacar do livro que ando a ler não só para me ocupar como também para mostrar um certo nível de erudição que presumi poder marcar pontos a meu favor, mas, pela falta de originalidade, já que muitos à nossa volta estavam a fazer o mesmo, e aproveitando a amálgama de pensamentos que me estava a ocorrer bem como uma coisa que acabara de fazer sem que a devesse ter feito, optei por começar a redigir este post.
Ou seja, neste momento em que estou a escrever ela está aqui ao meu lado, não fazendo a mínima ideia de que estou a escrever sobre si. Nem o vai saber mesmo que queira, pois a minha letra até eu tenho dificuldades em compreender. Pelo menos para já, uma vez que há pouco, quando se ausentou, enfiei nos seus pertences um bilhetinho onde escrevi: "oqueficanagaveta.blogs.sapo.pt - o passageiro do seu lado esquerdo". Isto significa que neste momento, e agora refiro-me ao momento em que o leitor está a percorrer estas linhas, ela pode já ter feito o mesmo. E pode também ter lido os meus posts anteriores e ter percebido que não sou de fiar, o que não abona nada a meu favor, mas, ainda assim, com o que decidi apesar de tudo publicar, há de ficar no mínimo um pouco lisonjeada. Como irá reagir é que é uma caixinha de surpresas. A profusão de possibilidades daria para escrever um romance, embora o mais provável seja que nada aconteça. Nem sequer noto curiosidade da parte dela em ver o que estou para aqui a escrever... Agora vou pôr o caderno de lado que já estamos quase a tocar na pista.
P.S. Assim que aterrámos ela tirou a máscara o que não me desiludiu de maneira nenhuma. Estava à espera de que nesta altura conseguisse obter alguma atenção da sua parte, mas qual quê. Saí à sua frente e entrei no autocarro na porta do meio na esperança de que me seguisse. Não é que se enfiou na porta de trás sentando-se numa cadeira virada para trás e não me dando qualquer hipótese. Afinal não queria mesmo nada comigo. Um desinteresse mais do que completo. Já no aeroporto desviou-se para o lavabo e eclipsou-se de vez. Nem enquanto esperava pela mala a vi passar. E agora o papelinho está com ela e já não há nada a fazer... ou será que também sonhei com isto?
No outro dia fui levar a minha filha à festa dos Santos Populares e quando a deixei com os seus amigos decidi ficar por lá. Depois de perceber para que lado se dirigiam, avancei para o lado oposto por entre uma multidão, tal como eu, ávida de um evento como este, depois de três anos de privação forçada.
Tentei abster-me de me focar no pormenor, concentrando-me em observar o espaço em redor como um todo, a ponto de não procurar reconhecer qualquer cara familiar. À medida que me ia aproximando da zona das diversões a população ia ficando mais compacta. As luzes e o som ganhavam intensidade e ia-me cruzando com mais e mais gente. Ia-me deparando psicadelicamente com caras alegres, sorrisos rasgados, bijuterias cintilantes, olhos brilhantes e bonitos, calças justas, ombros à vista, cabelos longos, pretos, castanhos, grisalhos, louros não tantos. Risos, muitos risos. E com as luzes dos equipamentos lúdicos. Intensas, coloridas de azul, amarelo, branco, verde, laranja, violeta, que acendiam e apagavam ao ritmo dos suspiros breves e agudos dos pistões de ar comprimido, num incessante corrupio que conferia ao meio envolvente um ambiente surreal onde sabia bem estar mergulhado. Aos sons de fundo constantes sobrepunham-se os gritos extasiados das crianças e dos adultos, quando eram sacudidos ou desciam vertiginosamente suspensos nos braços mecânicos e gigantes que os manipulavam entre o chão e as estrelas. Ou quando ficavam repentinamente de pernas para o ar, com os cabelos literalmente em pé, embora neste caso com as raízes voltadas para cima, por força da gravidade que nunca nos abandona. De quando em vez reverberava uma voz masculina, grave e melosa, amplificada um sem número de vezes, com a finalidade de atrair clientela para o seu específico equipamento, que proporcionaria indubitavelmente emoções jamais sentidas. Deambulei neste delírio por mais algum tempo, quase me sentindo numa discoteca depois de ingerido algum álcool.
Dirigi-me então ao extremo oposto da feira onde estava a decorrer um concerto. Comecei por ouvir, ver e sentir as primeiras músicas a partir de cá de trás. Mas o vocalista tinha uma energia surpreendente e puxava pelo público freneticamente. As luzes e os sons não eram agora menos intensos nem menos contagiantes. Passado pouco tempo já estava no centro da plateia. Todos púnhamos os braços no ar e saltávamos, incitados pelo cantor, mas acabei por recuperar a compostura depois de ganhar consciência de que os amigos da minha filha poderiam estar a ver-me. De onde me situava agora era possível ver melhor uma das artistas do coro que me chamara a atenção. Era muito bonita e a sua voz, também encantadora, sobressaía em relação às demais. Tinha muita energia, não impedindo que o seu corpo acompanhasse o ritmo da música. Elevava os pés alternadamente, balanceando de forma muito sensual as ancas, das quais, propositadamente, concedia entrever uma porção da sua pele, entre as calças de ganga, largas e ligeiramente descaídas, e as cavas do corpete que ostentava. Uma delícia! Fui me maravilhando com toda esta oferta de sensações até que o concerto acabou por terminar, já depois de o público nada mais conseguir fazer para que a banda regressasse. Nesta altura, atraído por uma força que não a da gravidade, já eu me encontrava a apenas escassos metros do palco. Mas já nada mais havia ali a fazer. Fui então ter com a minha filha que também estava ainda atordoada, mas com as reviravoltas que dera no rei dos baloiços. Percorremos os dez minutos que nos separavam do carro, regressando gradualmente, cada um à sua maneira, a este mundo real.