A Esperança
Por vezes deparo-me com episódios do dia a dia que me transportam para a minha infância. Para o tempo em que andava na escola primária. Vejo imagens desfocadas, pequenos flashes, apenas ténues contornos daqueles tempos, que recordo com alguma saudade. Inevitavelmente comparo-os com o tempo presente, ou melhor, comparo o Miguel daquele tempo com o atual. E constato, com amargura, que este Miguel é muito menos feliz do que era aquele. Na verdade, quando era criança, a felicidade nem era uma preocupação do presente. Daquele presente. Sabia que me encontrava numa viagem cujo destino era a felicidade, mas esta encontrava-se numa estação muito mais à frente. Sabia que me estava a preparar para ela. A estudar para chegar mais longe. Para ter um futuro feliz, de acordo com tudo o que naquele tempo fazia parte deste conceito. Mas, naquele presente, a felicidade não importava. Contudo, eramo-lo, sem o sabermos. Pelo menos na maior parte do tempo. Sobretudo quando correspondíamos ao que era esperado de nós, ou quando ninguém nos estava a ver. E quando sentíamos que gostavam de nós.
Felizmente (a importância desta palavra é impressionante!), no que diz respeito a agradar os meus pais, não posso dizer que tenha falhado, embora pairasse constantemente no ar a sensação de que esperavam sempre um pouco mais de mim, apesar de, naquele tempo, isso ainda não me preocupar muito.
Também não me tiravam o sono as frequentes discussões entre os meus pais. Apesar de nunca ter presenciado violência física, a violência das palavras no que diz respeito ao conteúdo, tom e intensidade, provocavam-me grande mágoa. Mas tinha a sensação de que aquilo era normal. Também os meus avós faziam o mesmo.
Na escola não tinha grandes problemas. Era minimamente respeitado e não gozavam comigo, embora me entristecesse o facto de ser sempre dos últimos a ser escolhido para integrar as equipas, nas aulas de ginástica. Lembro-me também de quanto me custavam as segunda-feiras e de como ficava com o estômago às voltas aos domingos à tarde. Acho que adivinhava a luta que tinha que travar para não ser gozado nem apresentar maus resultados em casa.
Estas dificuldades, normais, eram compensadas com a minha Mãe. Eu adorava-a e, nessa altura, ainda tinha a ilusão de que ela também me adorava. Nem mesmo o medo que tinha do meu Pai conseguia diminuir o conforto que encontrava na minha Mãe. Em relação ao meu Pai, sabia que gostava de mim. Pelo menos quando me comportava como ele desejava, o que eu ia fazendo sem qualquer tipo de revolta. Nessa altura…
Era então um menino muito bem-comportado, que tudo fazia para não perder o amor com que assim era recompensado… só mais tarde estas coisas me afectaram conscientemente. Mas nesta fase tudo era habitual e a verdade é que não era um miúdo triste. Brincava, ria, tinha amigos, entretinha-me facilmente. E as paixões amorosas provocavam-me emoções nunca antes vividas e, naquela idade, ser-se correspondido é que era anormal. Em suma era uma criança que, apesar de tudo, ia fazendo aquela viagem sem grandes atropelos.
Quando olho para mim hoje, encontro muitas diferenças. Não no meu íntimo. Esse permanece pouco alterado. Mas nos comportamentos. Na atitude. Na alegria. Na espontaneidade. Fiz toda aquela viagem de acordo com o guia. E não me posso queixar de nada. Tenho saúde, emprego, uma óptima mulher, filhos saudáveis e, aparentemente, felizes. No entanto, devo ter-me esquecido de sair na estação da felicidade. Ou talvez ela se encontre somente na estação terminal. Mas já nem nisso acredito. Constato que a diferença entre estes dois Migueis reside essencialmente na perda de um único e exclusivo factor: O da esperança. É esta que nos move. Que nos faz querer acordar. E quando esta se perde, fica a restar apenas o vazio. Tudo deixa de fazer sentido. Nada do que se possa fazer parece valer a pena. Nada somos. E, por melhor que sejamos, seremos sempre medíocres. As nossas limitações parecem ser incontornáveis. A esperança de encontrar algo em nós digno de louvor fica esmigalhada. E, por melhores qualidades que venha a descobrir em mim, sei que nenhuma contribuirá para alterar a situação.
Talvez o caminho seja através da aceitação. Talvez por aí seja possível restaurar a esperança, para que, cada passo, cada paragem, torne de novo a fazer sentido. Talvez ainda me reste um fiozinho de esperança. Talvez ainda não tenha morrido por completo. Nem ela, nem eu…