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O que fica na gaveta

Miguel Lucas

O que fica na gaveta

Miguel Lucas

Helena

Confesso que estava um pouco ansioso por reencontrar a Helena depois de um ano sem a ver. Ela é muito bonita. Tem uns olhos de cristal, azuis, que estão sempre a sorrir ainda que o seu semblante se apresente mais sério, o que não é raro tendo em conta os seus azeites. Não resisti descer até à água, fingindo querer refrescar-me, para cumprimentar os seus pais e aproveitar, objetivo principal, para cumprimentá-la também, quando subisse, ao passar na sua palhota. Quando o fiz só lá estava a irmã com as suas amigas. Não reparei que na palhota ao lado a jovem que estava aparentemente a dormir, de barriga para baixo, era ela. Cumprimentei a irmã, que me respondeu a contragosto, e quando me dirigia para a minha palhota, três casas ao lado, na fila seguinte, a Helena me interpelou, de um salto, para me cumprimentar. Tentei refazer-me do calafrio o mais rapidamente possível para disfarçar ao máximo todas as emoções que se me afloraram naquele instante, ao mesmo tempo que procurava palavras para lhe dizer que parecessem adequadas ao reencontro entre um senhor já entrado e uma amiga da sua filha… E tudo isto com uma plateia imensa, de gente conhecida, a observar a cena, parecendo já adivinhar o enredo que sobremaneira fui tentando camuflar. Acho que disfarcei bem, mas a minha alegria e atrapalhação não escaparam certamente à astucia da Helena. Ela é muito mais do que linda… Que sensação! Que miúdo eu sou. Como pode uma mulher de apenas vinte anos ter este efeito num homem já de meia-idade? Fui para a palhota e sentei-me para me recompor, deixar o coração voltar ao seu lugar, depois de ter descido ao estâmago e subido à garganta. Mais calmo, decidi descer até à água para me banhar um pouco, bendizer a vida, apreciar a beleza da praia e descansar o olhar sobre a Helena apenas um pouco mais. Como se este presente não bastasse, tive a imerecida sorte de poder vê-la descer para também se banhar e ainda tê-la como companhia por alguns minutos, até decidirmos todos voltar para os nossos cómodos. Talvez ela não saiba que me fez ganhar as férias. E eu também não sei que raio de efeito tive sobre ela. Mas deixem-me acreditar que este nosso encontro teve algo que ver com aquele brilhozinho que vi no seu olhar… E é assim que vai vivendo um incorrigível canalha.

 

A rosa amarela

Ultimamente tenho viajado bastante. Vou a terras longínquas. A outros planetas, como fazia o Principezinho. Numa dessas viagens encontrei uma rosa. De início, também era igual a tantas outras rosas. Era uma rosa amarela. Não daquele amarelo vaidoso, quase laranja. Nem daquele que se confunde com o branco. Era de um amarelo limão. Sim, era isso. Um amarelo fresco e alegre, a lembrar o Verão. Mal vi aquela rosa achei-a bonita, como aliás são todas as rosas. Mas cedo comecei a diferenciá-la das outras, porque passava por aqueles lados algumas vezes.

Quando passava deitava-lhe sempre o olho e cumprimentava-a cordialmente. Ela retribuía com a mesma moeda. Era uma rosa simpática, falava muito bem a toda a gente. Era mais atenciosa com os humildes mostrando-lhes sempre o seu lindo sorriso e espalhando alegria à sua volta. Ela deixava-os contentes e com mais vontade de trabalhar. E isso ainda me fazia gostar mais dela. Com os seus iguais não se deixava ficar. Tinha resposta pronta e era muito sensata merecendo por isso bastante respeito. Aquela rosa começou a cativar-me e percebi que também a cativava. Pelo menos um pouco. Porque quando gostamos de uma rosa e lhe damos atenção, uma atenção desinteressada, essa rosa também gosta de nós. E foi isso que acho que aconteceu.

Houve uma altura em que começámos a conversar. Sentava-me no chão ao seu lado e ia-lhe contando um pouco da minha vida. Ela gostava mais de ouvir do que de falar e ia-me ouvindo com atenção parecendo gostar do que lhe dizia. Mas mesmo sem falar nada sobre si mesma eu ia percebendo, pelas suas expressões, pelo seu olhar, pelos seus gestos tímidos, como é que ela era. E eu não me calava. Não era por medo de um vazio de conversa. Era mesmo porque ela parecia interessada em saber. E assim fomos ficando amigos. É boa a amizade. Faz-nos esquecer todo o resto, parecendo ser a coisa mais importante. É mesmo a coisa mais importante.

Enquanto estava naquele planeta a rosa amarela, cor de limão, era muito importante para mim. Mas chegou o dia em que tinha de voltar para o meu lar. Tive pena de deixar a rosa amarela e não sabia se regressaria àquele planeta. Quando nos despedimos ela deu-me um beijo na cara o que me surpreendeu, por um lado, mas veio a confirmar a ideia que tinha dela. Fiquei mais contente do que triste pois sabia que mesmo que não voltasse a encontrá-la podia escrever-lhe do meu planeta e que, para os amigos, muitos anos são como se fossem dias.

 Escrevi-lhe algumas vezes e ela ia-me respondendo, embora demorasse mais tempo do que aquilo que eu desejava. Mas sabia que era uma rosa muito viva e que tinha muito a fazer com as outras rosas. Para além disso também não gostava de escrever. E muito menos sobre ela, claro.

Numa dessas cartas explicou-me que gostava mais de desenhar e que desse modo conseguia falar sobre si mesma. Fiquei logo muito curioso acerca dos seus desenhos porque mesmo conhecendo um pouco da sua essência, uma pessoa gosta sempre de saber o que uma rosa tem para contar. Saber de onde veio; que vento levou a sua semente para aquele planeta; do que é que gosta mais de fazer, essas coisas mundanas e também outras mais sérias. Porque todos nós temos coisas mais sérias para contar a alguém. Um dia hei-de ver um ou outro desenho seu.

Mais tarde, numa altura em que a órbita do seu planeta passou mais perto da Terra, quis encontrar-me com ela. E foi o que combinámos. No dia do nosso encontro uma brisa terrestre, vinda do polo-Norte, não lhe fez nada bem e marcámos para outro dia. No início achei que tivesse sido uma desculpa e que ela não estivesse para me aturar. Mas acho que estava errado, o que me acontece muitas vezes. Sobretudo quando tento adivinhar pensamentos de rosas.

Essa altura foi muito confusa. Desmarquei o nosso encontro. Mas depois quis outra vez encontrar-me e combinámos que o faríamos quando a órbita dos nossos planetas se aproximasse outra vez. Não sei daqui a quanto tempo. Acho que ficou com medo de que eu quisesse arrancá-la da sua terra para a plantar na minha, ficando longe do seu planeta ameno e sentindo-se muito sozinha ali enquanto eu andava na minha vida. Mas não era isso que eu queria. Queria apenas estar mais um pouco com ela. Ela não me disse isto pois as rosas nunca mostram o que sentem, muito menos esta rosa. E o que eu mais fazia era adivinhar os seus pensamentos. Mas como é que um homem consegue adivinhar os pensamentos de uma rosa?

Agora os nossos planetas já estão um pouco afastados, mas quando o vento vem de feição ainda sinto o aroma das suas pétalas. Embora já não nos correspondamos tanto, guardo sempre esta rosa no meu coração e acho que com ela também acontece o mesmo. 

Em vez da tristeza da saudade tenho a alegria de nos termos pertencido um pouco. E quando fecho os olhos, se quiser, consigo vê-la. Com a sua cor amarela, mas de um amarelo limão. Um amarelo fresco e alegre a lembrar o Verão.

Abril de 2015

 

 

Maria João

A Maria João é a dona de um restaurante que passei a frequentar quando mudei de emprego, há cerca de dois anos e meio. Ela e o marido.

É um restaurante pequeno, com cinco ou seis mesas, muito acolhedor. A Maria, como passei a chamar-lhe bastante tempo mais tarde, é daquelas pessoas que põe amor em tudo o que faz. É ela quem cozinha, e fá-lo muitíssimo bem. Mas não foi só por causa da gastronomia que engracei com o restaurante. Foi principalmente por me sentir muito bem recebido ali. Com a Maria sempre preocupada em que não me faltasse nada. Sinto-me bem ali e pelo menos uma vez por semana costumava ir lá almoçar. No tempo dos confinamentos, até ia mais vezes, para levar o almoço para o escritório.

A Segunda-feira era o dia em que acabava por lá ir mais vezes. Neste dia, não sei bem por que razão, costumo sentir uma grande tristeza, e almoçar ali era um bálsamo que me ajudava a suportar melhor o dia. Sentia aquele lugar como um porto de abrigo. Um pouco como ir a casa de uma avó. Sabia que a Maria me iria tratar bem.

Há pouco mais de dois meses o nosso escritório mudou de instalações e fiquei a cerca de 6 km deste meu refúgio. No dia em que fizemos a mudança fui lá tomar um café para me despedir, mas garanti que continuaria a ir lá de vez em quando. Na verdade, continuo a fazê-lo quase com a mesma frequência, mas agora, com um sabor mais especial. A Maria fica ainda mais contente por me ver.

Há tempos contratou uma nova empregada para servir à mesa, a Sara. Passaram várias por lá, mas nenhuma se aguentou muito tempo. A menina Sara, que é como a trato, já que ela me trata por Sr. Miguel, é muito alegre e competente, mas não é por causa dela que lá vou. Acho que tanto ela como a Maria o sabem. A Maria é apenas meia dúzia de anos mais velha do que eu, ou talvez nem tanto. Não poderia ser minha avó. O afeto que temos um pelo outro é o que me faz manter a assiduidade. Gosto de ver aquele brilhozinho nos seus olhos quando lá vou.

Na semana passada fui lá outra vez. Não tinha ido na anterior e não podia deixar o ano findar sem lá voltar. A Maria, como sempre, apareceu a meio da refeição para, com a sua doçura, saber se tudo estava bem. E é sempre um prazer quando isso acontece. Quando fui ter com a menina Sara para pagar, assomei-me à porta da cozinha para desejar Boas Festas à Maria. Parecia que já estava à espera deste momento. Tive vontade de a abraçar, mas não seria apropriado expressar este sentimento, muito menos com a sua ajudante ali ao lado olhando-nos de soslaio, nem com a menina Sara nas minhas costas. Mas o meu desejo acabou por ser parcialmente satisfeito quando a Maria sugeriu dar-me dois beijinhos e eu ter prontamente acedido. Contudo não reprimi a minha vontade de, ao beijar-lhe as faces, lhe cingir levemente a cintura. Não fui inocente como teria sido um neto. Nem tão pouco o foi a Maria. Mas o momento terminou. Apenas os sorrisos permaneceram. Despedi-me da menina Sara, que finge nada disto perceber, e fui-me embora afastando da ideia a hipótese sensata de deixar de ver a Maria.

 

 

 

Na cozinha

 

Se te sentires sozinha

podes vir ter comigo.

Sentamo-nos na cozinha.

Faço dela teu abrigo.

 

Ponho água a aquecer

para fazer uma infusão.

Se quiseres podes dizer

o que te moi o coração.

 

Enquanto não ferver,

se quiseres, podes chorar.

Isso basta para entender.

Não precisas de falar.

 

Quando voltar do fogão

ponho na mesa a chaleira,

faço a preparação

e sento-me à tua beira.

 

E melhor do que contar

podes somente a cabeça

no meu ombro encostar

até que o mal desapareça.

 

Então, como a uma criança,

te aperto contra o meu peito

abandonando a lembrança

de que o chá já está feito.

 

 

A tua voz

Gosto de falar contigo.
De ouvir as notas alegres
que entoa a tua voz.
E quando isso acontece,
és como a flor que aparece
no ramo nu da amendoeira.
Ou como a cotovia,
que contente pousa nele,
encantando com o seu canto
e largando logo a seguir,
sem que o possa impedir.
Quando a tua voz se cala,
guardo no meu coração
a sua reverberação
até que voltes a surgir.

 

 

Amizade

Penso que tu pensas que eu penso de ti
aquilo que pensei que pensaste de mim.
Acontece que eu não penso nada disso.
E já percebi que também tu
não é isso que pensas.

O melhor é não pensarmos muito
porque, se o fizermos, corremos o risco
de pensar do outro coisas que,
se não pensássemos,
seria muito melhor.
Não achas?

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Nota:

Os nomes aqui citados apenas são verdadeiros nas histórias que são fictícias.

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