O passageiro do seu lado esquerdo
Quando me sentei e vi de quem ia ficar ao lado não fiquei logo entusiasmado, mas fiquei curioso. Deve andar pelos quarenta. Muito direitinha, já com o cinto de segurança apertado, olhando em frente, sem grandes movimentações. Apesar de já não ser obrigatório, estava de máscara. Fiquei curioso, é verdade. Fiquei também um pouco despeitado por não se mostrar minimamente interessada na minha pessoa. Já prestes a levantar voo para regressar ao meu querido país, ela começa a preparar-se para a viagem que iria durar apenas duas horas, tempo suficiente para se ficar enregelado caso não se tomassem as devidas precauções. Pelo seu ritual via-se que era uma habitué. Com casacos e camisolas improvisou duas mantas, uma para as pernas e outra para os ombros, até que o desassossego terminou. Da minha parte apenas deslizei até cima o fecho-éclair do casaco. Como eu estava do lado da coxia, a janela era um óptimo pretexto para poder tranquilamente observá-la, embora apenas de perfil. Nem sequer um pouco enviesada a consegui ver. Os seus olhos cor de mel, juntamente com as pestanas e as sobrancelhas, eram impressionantes. Davam vontade de me diluir neles.
Sempre na esperança de que se dignasse olhar para mim acabei por começar a adormecer. Neste estágio dei por mim a perguntar aos meus botões, ou melhor, ao meu fecho-éclair, que seria se lhe desse a mão. Um gesto que estava mesmo ali ao meu alcance. Mais fácil do que pedir um copo de água. Claro que não o fiz. Perante a indiferença às minhas mal disfarçadas investidas o certo era que a coisa não fosse correr bem. Não levaria um estalo, mas de um gesto brusco não me livraria pela certa. Contudo, ainda dei espaço à incerteza pensando como seria se acontecesse o oposto. Se partisse dela a iniciativa de me dar mão. Claro que não rejeitaria a sua mão, com aqueles dedos esguios e delicados, de unhas bem recortadas e desprovidas de pintura. Acho que começaria a pairar como se a aeronave perdesse de repente a sustentação...E continuei este diálogo comigo próprio, maldizendo a Mãe Natureza por não ter promovido maior igualdade de género nas respostas a este tipo de iniciativas.
Quando acordei ela estava com a mesma postura, mas agora entretida com o telemóvel. Fui deitando o rabo do olho para tentar confirmar, com base no que ela estava a ver, se era portuguesa ou não, mas não me dava grandes hipóteses, colocando a mão esquerda de maneira que eu não conseguisse ver nada. Excepto que estava despida de qualquer anel, informação tão ou mais útil do que a que pretendera saber. Do outro lado seguia outro passageiro que esteve quase todo o tempo a dormir, mas que deu para perceber que não lhe era nada. Pensei sacar do livro que ando a ler não só para me ocupar como também para mostrar um certo nível de erudição que presumi poder marcar pontos a meu favor, mas, pela falta de originalidade, já que muitos à nossa volta estavam a fazer o mesmo, e aproveitando a amálgama de pensamentos que me estava a ocorrer bem como uma coisa que acabara de fazer sem que a devesse ter feito, optei por começar a redigir este post.
Ou seja, neste momento em que estou a escrever ela está aqui ao meu lado, não fazendo a mínima ideia de que estou a escrever sobre si. Nem o vai saber mesmo que queira, pois a minha letra até eu tenho dificuldades em compreender. Pelo menos para já, uma vez que há pouco, quando se ausentou, enfiei nos seus pertences um bilhetinho onde escrevi: "oqueficanagaveta.blogs.sapo.pt - o passageiro do seu lado esquerdo". Isto significa que neste momento, e agora refiro-me ao momento em que o leitor está a percorrer estas linhas, ela pode já ter feito o mesmo. E pode também ter lido os meus posts anteriores e ter percebido que não sou de fiar, o que não abona nada a meu favor, mas, ainda assim, com o que decidi apesar de tudo publicar, há de ficar no mínimo um pouco lisonjeada. Como irá reagir é que é uma caixinha de surpresas. A profusão de possibilidades daria para escrever um romance, embora o mais provável seja que nada aconteça. Nem sequer noto curiosidade da parte dela em ver o que estou para aqui a escrever... Agora vou pôr o caderno de lado que já estamos quase a tocar na pista.
P.S. Assim que aterrámos ela tirou a máscara o que não me desiludiu de maneira nenhuma. Estava à espera de que nesta altura conseguisse obter alguma atenção da sua parte, mas qual quê. Saí à sua frente e entrei no autocarro na porta do meio na esperança de que me seguisse. Não é que se enfiou na porta de trás sentando-se numa cadeira virada para trás e não me dando qualquer hipótese. Afinal não queria mesmo nada comigo. Um desinteresse mais do que completo. Já no aeroporto desviou-se para o lavabo e eclipsou-se de vez. Nem enquanto esperava pela mala a vi passar. E agora o papelinho está com ela e já não há nada a fazer... ou será que também sonhei com isto?