O melhor amigo
Ainda tenho um papel, numa caixa onde sobrevivem alguns resquícios da minha infância, onde ficou atestado, preto no branco, sob a forma de uma cruz no quadradinho do sim, que eu era o seu melhor amigo. Estávamos no 5º ano, ou seja, tínhamos 10 anos de idade. Por obra do acaso tive a sorte de ter como colega de carteira uma miúda excepcional, que entrara na escola nesse mesmo ano, a Vera. À medida que o tempo ia passando a amizade que lhe tinha ia ficando mais forte. Quando lhe fiz aquele questionário já não era só seu melhor amigo que queria ser. Gostava que ela sentisse por mim algo equivalente ao desassossego que me inquietava sempre que estava com ela. Mas ser melhor amigo não significava que essa porta estivesse fechada e a esperança ia transformando cada dia num novo desafio.
No final do ano letivo, naquela altura em que a natureza pinta de alegria tudo o que nos rodeia, em que os sorrisos nos rostos são mais abertos e os olhos mais brilhantes, em que a despedida dos agasalhos corresponde a uma libertação de nós mesmos e em que parece que nos movemos num mundo de fantasia, houve uma festa de anos na qual não pude estar presente. Na segunda-feira seguinte notei que esta alegria estava impressa na Vera de uma forma ainda mais viva, mas não percebi logo porquê. Soube mais tarde que nesta festa um colega dançou com ela e que até lhe terá dado um beijinho na boca. Pelos risinhos invejosos das amigas e pelo que fui ouvindo aqui e ali, percebi que ser mais do que um amigo estava agora fora do meu alcance. E foi nesse dia, pela primeira vez na vida, que senti o que é ter a alma na sola dos pés e como a Primavera pode perder o seu encanto de um momento para o outro.
Passado não muito tempo o ano letivo findou, a Vera mudou de escola e eu nunca mais soube nada dela. No ano seguinte tive algumas paixões, mas daquelas em que se enviam papelinhos com corações rachados e que não deixam qualquer cicatriz. Ainda gostava da Vera e tinha muitas saudades dela. No outro ano, já o 7º, gostei mais a sério de uma colega, mas o meu coração ainda estava dividido. Acho que ainda escolheria a Vera, se me aparecesse à frente. Mas, aos poucos, e como sempre, o tempo lá se encarregou de apagar os vestígios deste meu primeiro grande amor.
Naquele questionário também ficou escrito o seu nome completo e a sua morada, mas acabaram por nunca servir para coisa alguma. Nessa altura tinha uma capacidade de aceitação dos factos que, infelizmente, hoje não tenho. Nunca me ocorreu que lhe poderia escrever uma carta e ela nunca chegou a saber que fui mais do que um seu amigo. Nem tão pouco serviu para, mais recentemente, encontrar algo a seu respeito na internet, o que fiz apenas por curiosidade e sem grande empenho. A recordação que tenho dela é tudo quanto me basta.