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O que fica na gaveta

Miguel Lucas

O que fica na gaveta

Miguel Lucas

O cafezinho com a Marisa

A Marisa respondeu à minha mensagem confirmando o nosso encontro para as 18:00, embora tenha deixado claro que às 18:30 teria que sair por causa de um compromisso. Fiquei exultante. Meia hora bastava-me para tirar as imensas saudades que já tinha.

Telefonara-lhe na véspera do dia em que ia regressar a casa, depois de uma semana deslocado em trabalho. Como ia passar na sua terra lembrei-me de combinar um cafezinho. Nem estava a acreditar que finalmente ia estar com ela depois de cinco anos em que apenas nos cruzámos ocasionalmente e sem tempo para grandes conversas.

Conheci-a nos Açores por motivos profissionais. Demo-nos muito bem durante aquele mês em que nos víamos todos os dias. Estávamos muitas vezes juntos. Almocei com ela bastantes vezes, frequentemente a sós. Estávamos muito à vontade um com o outro. Fiquei a gostar muito dela. É um pouco reservada, muito sensata, bonita, com um sorriso só seu, aliás, quase tudo é só seu. A doçura, a voz, o sotaque, o olhar, o nervosismo que se descobre nas suas unhas, a ironia.

Nunca percebi muito bem o que sinto pela Marisa. Nunca senti aquela paixão louca de pensar nela o tempo todo. Apenas uma vontade enorme de estar com ela. Porém, a nenhuma outra mulher escrevi um conto, nem poemas como aqueles que lhe dediquei.

Também nunca percebi o que sentia a Marisa por mim. Declinou alguns convites que lhe fiz, mas aceitou outros que acabaram por não se realizar por minha causa. Nunca acreditei que gostasse de mim mais do que de um amigo. Mas isso também não me importava. Desde que pudesse falar com ela de vez em quando, tudo estava bem. Cheguei mesmo a julgar que as suas inclinações amorosas se dirigiam ao seu género o que até me fez estar mais à vontade, pois deste modo sabia que não iria sofrer por minha causa.

Mas a hora do nosso reencontro finalmente tinha chegado. Estava bastante nervoso. Parei o carro, mal estacionado, na bomba de gasolina que havia mesmo ao lado do seu trabalho. Cheguei dez minutos antes da hora e dei-lhe a conhecer que já lá estava. Respondeu-me que tinha sido agarrada pelo chefe e que ainda iria demorar mais um pouco. Nesse tempo ia imaginando como iria aparecer. Se se teria arranjado para a ocasião. Ia ficando cada vez mais nervoso e, para combater esta ansiedade, decidi abastecer o carro, já que tinha ainda uma longa viagem pela frente.

E foi nessa altura que ela apareceu. Não estava nada como a esperava. A forma como vinha vestida demonstrou que não me queria impressionar. Abri-lhe um sorriso de enorme contentamento e o sorriso com que me retribuiu fez-me esquecer a decepção inicial. Fui estacionar o carro e dirigimo-nos para o café. Íamos conversando enquanto caminhávamos e, com o meu entusiasmo, por vezes tropeçava nas palavras. Ela fez o mesmo por duas vezes, mas nas pedras da calçada, o que fingi não notar. Não estava à espera deste seu nervosismo. Ao mesmo tempo o meu ia-se apaziguando.

Sentámo-nos a uma mesa na esplanada e quando fui lá dentro fazer o pedido referi que era para a mesa onde se encontrava aquela rapariga de calças encarnadas. Este momento provocou-me uma emoção inesperada. Parecia que estávamos juntos desde sempre. Tomámos o café e conversámos muito para além da hora do seu suposto compromisso, até que decidimos ir embora. Acompanhei-a até ao seu carro e custou-me a despedida. Estava mais nervosa agora. Tive que lhe chamar a atenção por causa dos carros. Apeteceu-me tomá-la nos braços e colocá-la no carro em segurança. Apeteceu-me abraçá-la e beijá-la, mas não o podia fazer. Parecia que nem eu nem ela queríamos que aquele encontro terminasse. Mas lá tivemos que nos separar e foi como tivesse sido apartado de mim um pedaço do meu corpo.

Só me apetecia voltar a estar com ela. Passei por lá poucos dias depois, mas não me atrevi a combinar outro encontro. Nenhum outro seria como aquele. Mas dei-lhe a conhecer a minha passagem, na esperança de que me convidasse para nos vermos de novo. Mas não. Desde que nos despedimos fechou-se na sua concha. Deixava as minhas mensagens sem resposta ou, quando muito, respondia por monossílabos. Até que, pressionada por mim, me pediu para deixar de a abordar. Já lá vão mais de dois anos...

Desde então enviei-lhe duas mensagens. Uma foto de uma flor, que já tinha tirado há algum tempo e que só ela conhece o significado e, meses mais tarde, um pequeno poema. Como esperava, nunca me respondeu. Por outro lado, nunca me fechou a porta. Nem estes meus atrevimentos a fizeram bloquear-me, nem mesmo deixar de me seguir nas redes sociais, permanecendo entre nós uma passagem, ainda que muito estreita, suficiente para eu sentir que ela está já ali e assim conseguir suportar o vazio que me provoca a sua ausência.

 

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Nota:

Os nomes aqui citados apenas são verdadeiros nas histórias que são fictícias.

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