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O que fica na gaveta

Miguel Lucas

O que fica na gaveta

Miguel Lucas

Maria João

A Maria João é a dona de um restaurante que passei a frequentar quando mudei de emprego, há cerca de dois anos e meio. Ela e o marido.

É um restaurante pequeno, com cinco ou seis mesas, muito acolhedor. A Maria, como passei a chamar-lhe bastante tempo mais tarde, é daquelas pessoas que põe amor em tudo o que faz. É ela quem cozinha, e fá-lo muitíssimo bem. Mas não foi só por causa da gastronomia que engracei com o restaurante. Foi principalmente por me sentir muito bem recebido ali. Com a Maria sempre preocupada em que não me faltasse nada. Sinto-me bem ali e pelo menos uma vez por semana costumava ir lá almoçar. No tempo dos confinamentos, até ia mais vezes, para levar o almoço para o escritório.

A Segunda-feira era o dia em que acabava por lá ir mais vezes. Neste dia, não sei bem por que razão, costumo sentir uma grande tristeza, e almoçar ali era um bálsamo que me ajudava a suportar melhor o dia. Sentia aquele lugar como um porto de abrigo. Um pouco como ir a casa de uma avó. Sabia que a Maria me iria tratar bem.

Há pouco mais de dois meses o nosso escritório mudou de instalações e fiquei a cerca de 6 km deste meu refúgio. No dia em que fizemos a mudança fui lá tomar um café para me despedir, mas garanti que continuaria a ir lá de vez em quando. Na verdade, continuo a fazê-lo quase com a mesma frequência, mas agora, com um sabor mais especial. A Maria fica ainda mais contente por me ver.

Há tempos contratou uma nova empregada para servir à mesa, a Sara. Passaram várias por lá, mas nenhuma se aguentou muito tempo. A menina Sara, que é como a trato, já que ela me trata por Sr. Miguel, é muito alegre e competente, mas não é por causa dela que lá vou. Acho que tanto ela como a Maria o sabem. A Maria é apenas meia dúzia de anos mais velha do que eu, ou talvez nem tanto. Não poderia ser minha avó. O afeto que temos um pelo outro é o que me faz manter a assiduidade. Gosto de ver aquele brilhozinho nos seus olhos quando lá vou.

Na semana passada fui lá outra vez. Não tinha ido na anterior e não podia deixar o ano findar sem lá voltar. A Maria, como sempre, apareceu a meio da refeição para, com a sua doçura, saber se tudo estava bem. E é sempre um prazer quando isso acontece. Quando fui ter com a menina Sara para pagar, assomei-me à porta da cozinha para desejar Boas Festas à Maria. Parecia que já estava à espera deste momento. Tive vontade de a abraçar, mas não seria apropriado expressar este sentimento, muito menos com a sua ajudante ali ao lado olhando-nos de soslaio, nem com a menina Sara nas minhas costas. Mas o meu desejo acabou por ser parcialmente satisfeito quando a Maria sugeriu dar-me dois beijinhos e eu ter prontamente acedido. Contudo não reprimi a minha vontade de, ao beijar-lhe as faces, lhe cingir levemente a cintura. Não fui inocente como teria sido um neto. Nem tão pouco o foi a Maria. Mas o momento terminou. Apenas os sorrisos permaneceram. Despedi-me da menina Sara, que finge nada disto perceber, e fui-me embora afastando da ideia a hipótese sensata de deixar de ver a Maria.

 

 

 

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Os nomes aqui citados apenas são verdadeiros nas histórias que são fictícias.

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