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O que fica na gaveta

Miguel Lucas

O que fica na gaveta

Miguel Lucas

Desabafo

A sensação de profunda tristeza persiste. É um sentir que nada vale a pena. No trabalho cobre-me como uma sombra a ideia de que sou demasiado remunerado para aquilo que produzo. Sinto que o meu patrão está desiludido comigo, que esperava outra coisa de mim, que talvez o nosso amigo comum me tenha sobrevalorizado ao falar-lhe de mim, antes de me contratar. Sinto que deseja livrar-se de mim. E esta ideia não me abandona. E nunca acho oportuno perguntar-lhe se está satisfeito com o meu trabalho. Na verdade, tenho receio de que a sua resposta venha confirmar a minha suposição, ou melhor, tenho a certeza de que irá. Assim, acabo por não a fazer, optando por me manter nesta dúvida amarga. Em casa tenho uma sensação parecida. Tenho a profunda convicção de que os meus filhos, principalmente o mais velho, me desprezam. Não têm orgulho em mim. Me acham um falhado, sem convicções, brando. Que é o que sinto ser e que, pensando bem, sou mesmo. Em relação ao meu Pai é fácil de constatar que gostaria que eu fosse de outra maneira e que ainda mantém a esperança de que eu mude, nunca me aceitando como sou, nem gostando de mim como sou, mas apenas daquele que gostaria que eu fosse. A minha Mãe é diferente. Acho que é mesmo desinteresse por mim. Não é desilusão. É nunca se ter iludido comigo.

E assim passeio o meu esqueleto, para um lado e para o outro, cumprindo as obrigações a que está sujeito todos os dias, quer sejam de semana ou de fim-de-semana. Sempre esperando pelo dia seguinte. À semana esperando que chegue o fim-de-semana e ao fim-de-semana esperando que chegue a semana. De dia esperando que chegue a noite e à noite esperando que chegue um novo dia. Para tudo se manter na mesma.

Para agravar a situação, a miúda do café despediu-se, a companheira de viagem mudou de destino e a Catarina deixou de olhar para mim. Tudo isto, que aconteceu ao mesmo tempo, me deixa mergulhado numa ainda maior solidão. O que me vai valendo é a Eva. Se não fosse o seu carinho acho que já me tinha afundado irremediavelmente. Quem me dera amá-la mais.

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Nota:

Os nomes aqui citados apenas são verdadeiros nas histórias que são fictícias.

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