Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O que fica na gaveta

Miguel Lucas

O que fica na gaveta

Miguel Lucas

Na festa dos Santos Populares

No outro dia fui levar a minha filha à festa dos Santos Populares e quando a deixei com os seus amigos decidi ficar por lá. Depois de perceber para que lado se dirigiam, avancei para o lado oposto por entre uma multidão, tal como eu, ávida de um evento como este, depois de três anos de privação forçada.

Tentei abster-me de me focar no pormenor, concentrando-me em observar o espaço em redor como um todo, a ponto de não procurar reconhecer qualquer cara familiar. À medida que me ia aproximando da zona das diversões a população ia ficando mais compacta. As luzes e o som ganhavam intensidade e ia-me cruzando com mais e mais gente. Ia-me deparando psicadelicamente com caras alegres, sorrisos rasgados, bijuterias cintilantes, olhos brilhantes e bonitos, calças justas, ombros à vista, cabelos longos, pretos, castanhos, grisalhos, louros não tantos. Risos, muitos risos. E com as luzes dos equipamentos lúdicos. Intensas, coloridas de azul, amarelo, branco, verde, laranja, violeta, que acendiam e apagavam ao ritmo dos suspiros breves e agudos dos pistões de ar comprimido, num incessante corrupio que conferia ao meio envolvente um ambiente surreal onde sabia bem estar mergulhado. Aos sons de fundo constantes sobrepunham-se os gritos extasiados das crianças e dos adultos, quando eram sacudidos ou desciam vertiginosamente suspensos nos braços mecânicos e gigantes que os manipulavam entre o chão e as estrelas. Ou quando ficavam repentinamente de pernas para o ar, com os cabelos literalmente em pé, embora neste caso com as raízes voltadas para cima, por força da gravidade que nunca nos abandona. De quando em vez reverberava uma voz masculina, grave e melosa, amplificada um sem número de vezes, com a finalidade de atrair clientela para o seu específico equipamento, que proporcionaria indubitavelmente emoções jamais sentidas. Deambulei neste delírio por mais algum tempo, quase me sentindo numa discoteca depois de ingerido algum álcool.

Dirigi-me então ao extremo oposto da feira onde estava a decorrer um concerto. Comecei por ouvir, ver e sentir as primeiras músicas a partir de cá de trás. Mas o vocalista tinha uma energia surpreendente e puxava pelo público freneticamente. As luzes e os sons não eram agora menos intensos nem menos contagiantes. Passado pouco tempo já estava no centro da plateia. Todos púnhamos os braços no ar e saltávamos, incitados pelo cantor, mas acabei por recuperar a compostura depois de ganhar consciência de que os amigos da minha filha poderiam estar a ver-me. De onde me situava agora era possível ver melhor uma das artistas do coro que me chamara a atenção. Era muito bonita e a sua voz, também encantadora, sobressaía em relação às demais. Tinha muita energia, não impedindo que o seu corpo acompanhasse o ritmo da música. Elevava os pés alternadamente, balanceando de forma muito sensual as ancas, das quais, propositadamente, concedia entrever uma porção da sua pele, entre as calças de ganga, largas e ligeiramente descaídas, e as cavas do corpete que ostentava. Uma delícia! Fui me maravilhando com toda esta oferta de sensações até que o concerto acabou por terminar, já depois de o público nada mais conseguir fazer para que a banda regressasse. Nesta altura, atraído por uma força que não a da gravidade, já eu me encontrava a apenas escassos metros do palco. Mas já nada mais havia ali a fazer. Fui então ter com a minha filha que também estava ainda atordoada, mas com as reviravoltas que dera no rei dos baloiços. Percorremos os dez minutos que nos separavam do carro, regressando gradualmente, cada um à sua maneira, a este mundo real.

 

 

As flores do jardim

 

Este mundo é um jardim

onde há muita flor bonita.

Gosto muito do jasmim,

da orquídea e da tulipa.

 

E nem sei lá muito bem

de qual delas gosto mais.

Mas não ferem ninguém

as preferências naturais.

 

No que respeita a gente,

não foi assim que se fez.

Decretou-se sabiamente

uma amar de cada vez.

 

Acontece que o amor,

é como a erva daninha:

irrompe com seu vigor

onde menos se adivinha.

 

E se brota outra flor

que encanta o meu ser,

o que me causa mais dor

é não a poder colher.

 

O teu rosto

Nunca vi o teu rosto,
nem tão-pouco quero vê-lo.
Do que o havia suposto
não vá ele ser mais belo.

Se não o vendo me é penoso
refrear minha paixão,
se se revelar formoso,
vai ser mortificação.

Pode ser que seja feio,
com a boca retorcida,
dentes tortos de permeio
e com lábios em ferida.

Se for desta natureza,
talvez possa ofuscar
tua restante beleza
e eu suporte te amar.

 

 

A companheira de viagem

Sempre que vou de comboio para o trabalho tu viajas comigo. E eu gosto da tua companhia. Mesmo que vás noutra carruajem. O facto de te saber ali já me conforta. Sei que és ainda muito nova. Que podias ser minha filha. Que terás saído há pouco da idade da inocência. No meu caso é o contrário. Há muito que a perdi. Contudo, sinto-me a regressar a ela. Sinto que estou a voltar a comportar-me como quando era miúdo.  Se por um lado este retrocesso é triste, por outro alegra-me o regresso a uma pureza que julgava para sempre perdida. O envelhecimento tem esta compensação.

Estranhamente, sinto que gostas da minha presença, mas deve ser fantasia minha. Como poderias gostar da companhia de um velho? Pelo menos deve ser assim que me vês. E esta é a maior dor que provoca a idade. Saber que nunca mais uma mulher como tu se interessará por mim... Se por um lado se regressa a uma maior pureza de sentimentos, por outro, torna-se inalcançável a exteriorização dos mesmos. Não podia ser mais cruel esta compensação. Na viagem de comboio entramos e saímos nas mesmas estações. Na viagem da vida acabas de entrar numa carruagem da qual estou prestes a sair.

Gosto do teu olhar. Sendo os teus olhos também bonitos é no olhar que encontro a tua maior beleza. Nele encontro algo da tua alma, que inexplicavelmente muito me agrada. Gostava de ser miúdo novamente. De ter a idade em que dar as mãos é a melhor coisa do mundo. Gostava de fazer esta viagem de mãos dadas contigo. Somente.

Nunca ousei manifestar-me. E se por acaso me encontraste a olhar para ti, mais não viste do que um olhar desinteressado, que pousou em ti como nos prédios que passam lá fora, ou em alguém que se sentou ao teu lado. Não me permito dar-te a entender que não me és indiferente. Não tem a ver com as normas da sociedade. Tem a ver com a minha certeza de que não vale a pena. Viajarei mais vezes contigo, certamente. E só isso já é muito bom.

 

 

 

A empregada do café

Tenho por hábito, ao fim-de-semana, tomar café a meio da manhã. Há uns meses resolvi experimentar um café ao pé de minha casa que reabrira depois de um confinamento já não sei de quanto tempo. O café é bom, mas o que mais me agradou foi uma das empregadas que lá trabalha. Apesar de usar sempre máscara, vê-se que é jovem e tem uma silhueta que roça a perfeição. Escusado será dizer que adotei este café como local de culto. O café ali é mesmo bom...

Há cerca de um mês vi-a pela primeira vez sem máscara. Não foi uma grande decepção, mas tinha uma fisionomia completamente diferente da que construira nas semanas anteriores. Bastante menos bonita, mas já nada havia a fazer... Já me tinha afeiçoado a ela e rapidamente passei a gostar do seu rosto e a habituar-me a ele, pois quando simpatizamos com uma pessoa gostamos das suas características independentemente do respetivo feitio. Apesar de ela ser de poucas conversas, tal como eu, era sempre um prazer lá ir. Mesmo não recebendo de sua parte sinais de atenção ou de simpatia.

Hoje, quando lá cheguei, ela estava a limpar uma mesa da esplanada. Procurei dar-lhe os bons-dias, mas ela não olhou para mim, apesar de ter ficado com a certeza de que me vira. Pedi o café ao balcão e ela acabou por se aproximar, mas apenas para registar qualquer coisa no écran táctil, mais uma vez sem me dar oportunidade para a cumprimentar. Como se tornou regra, dirigi-me para uma mesa alta, cá fora, para o tomar sem me sentar. Neste período apenas a vi à distância e, quando decidi ir-me embora, levei a chávena ao balcão mais para ter nova oportunidade de me cruzar com ela do que por amabilidade, embora costume ter esta atenção noutras ocasiões.

Como desejara, nesse momento, vi-a vir na minha direção e preparei-me para me lhe dirigir. Tal não foi necessário porque, antes que isso acontecesse, fez-me o sorriso mais bonito que alguma vez eu pudesse desejar, o qual se espelhou imediatamente na minha cara. Nem foram necessárias palavras para que os votos de bom-dia fossem proferidos. A emoção que tive foi de absoluta felicidade e comecei logo a congeminar futuras abordagens.

Não sei porque preciso tanto de momentos como este. Destas massagens no ego. Talvez por precisar tanto deles ando constantemente a procurá-los. Em geral acontecem quando menos espero e com uma frequência muito inferior àquilo que desejava. Mas quando acontecem, parece que fico nas nuvens, o que compensa a sua raridade. E a vontade de os deixar escritos talvez se prenda mais com o receio de os esquecer do que com a alegria em partilhá-los. Em relação a ela, até aqui eu seguia pelo carreiro, apesar de pisar nas ervas de vez em quando. Com o percalço de hoje fiquei com mais vontade de dele me desviar, apesar de saber que o precipício está mesmo ali ao lado. Uma coisa é certa: vou continuar a tomar café neste lugar...

 

 

O tempo dos pensamentos

A nossa mente tem capacidades impressionantes. Espanto-me comigo mesmo com a quantidade de pensamentos que por vezes me ocorrem num espaço de tempo tão curto. Já me aconteceu em situações de emergência, como por exemplo num acidente, ou quase acidente, em que parece que vemos as coisas a desenrolarem-se em câmara lenta, dando-nos tempo para decidir o que havemos de fazer para evitar o desastre. Mas o tipo de situação que me leva a escrever é outro. É uma situação que já me ocorreu por diversas vezes, e que estou certo de que acontece com a maior parte de nós, e que me aconteceu hoje novamente:

Ao dobrar uma esquina deparei-me subitamente com uma jovem mulher que vinha na minha direção. Os nossos olhares encontraram-se num instante, mas, no seguinte, já eu e ela estávamos de costas voltadas, cada um a prosseguir com as suas vidas. Contudo, neste período de tempo, foi possível fazer o seguinte: observar a rapariga; fazer uma primeira avaliação com base nos traços fisionómicos, na postura, nos gestos e na atitude; formular uma opinião que, neste caso, foi muito positiva; expressar inadvertidamente, ainda que de forma algo discreta, uma certa estupefação e um certo agrado; perceber que ela percebeu; tentar disfarçar; ficar na dúvida relativamente à avaliação que fez de mim mas notar que não ficou indiferente e ficar chateado porque o momento acabou. Tudo isto num intervalo de aproximadamente um milissegundo. É ou não é extraordinário?

 

 

...

Será que um dia vou poder abraçar-te?

Será que alguma vez pegarei nas tuas mãos e as beijarei?

Sentirei algum dia, nas costas dos meus dedos, a suavidade da pele do teu rosto?

 

 

A Esperança

Por vezes deparo-me com episódios do dia a dia que me transportam para a minha infância. Para o tempo em que andava na escola primária. Vejo imagens desfocadas, pequenos flashes, apenas ténues contornos daqueles tempos, que recordo com alguma saudade. Inevitavelmente comparo-os com o tempo presente, ou melhor, comparo o Miguel daquele tempo com o atual. E constato, com amargura, que este Miguel é muito menos feliz do que era aquele. Na verdade, quando era criança, a felicidade nem era uma preocupação do presente. Daquele presente. Sabia que me encontrava numa viagem cujo destino era a felicidade, mas esta encontrava-se numa estação muito mais à frente. Sabia que me estava a preparar para ela. A estudar para chegar mais longe. Para ter um futuro feliz, de acordo com tudo o que naquele tempo fazia parte deste conceito. Mas, naquele presente, a felicidade não importava. Contudo, eramo-lo, sem o sabermos. Pelo menos na maior parte do tempo. Sobretudo quando correspondíamos ao que era esperado de nós, ou quando ninguém nos estava a ver. E quando sentíamos que gostavam de nós.

Felizmente (a importância desta palavra é impressionante!), no que diz respeito a agradar os meus pais, não posso dizer que tenha falhado, embora pairasse constantemente no ar a sensação de que esperavam sempre um pouco mais de mim, apesar de, naquele tempo, isso ainda não me preocupar muito.

Também não me tiravam o sono as frequentes discussões entre os meus pais. Apesar de nunca ter presenciado violência física, a violência das palavras no que diz respeito ao conteúdo, tom e intensidade, provocavam-me grande mágoa. Mas tinha a sensação de que aquilo era normal. Também os meus avós faziam o mesmo.

Na escola não tinha grandes problemas. Era minimamente respeitado e não gozavam comigo, embora me entristecesse o facto de ser sempre dos últimos a ser escolhido para integrar as equipas, nas aulas de ginástica. Lembro-me também de quanto me custavam as segunda-feiras e de como ficava com o estômago às voltas aos domingos à tarde. Acho que adivinhava a luta que tinha que travar para não ser gozado nem apresentar maus resultados em casa.

Estas dificuldades, normais, eram compensadas com a minha Mãe. Eu adorava-a e, nessa altura, ainda tinha a ilusão de que ela também me adorava. Nem mesmo o medo que tinha do meu Pai conseguia diminuir o conforto que encontrava na minha Mãe. Em relação ao meu Pai, sabia que gostava de mim. Pelo menos quando me comportava como ele desejava, o que eu ia fazendo sem qualquer tipo de revolta. Nessa altura…

Era então um menino muito bem-comportado, que tudo fazia para não perder o amor com que assim era recompensado… só mais tarde estas coisas me afectaram conscientemente. Mas nesta fase tudo era habitual e a verdade é que não era um miúdo triste. Brincava, ria, tinha amigos, entretinha-me facilmente. E as paixões amorosas provocavam-me emoções nunca antes vividas e, naquela idade, ser-se correspondido é que era anormal. Em suma era uma criança que, apesar de tudo, ia fazendo aquela viagem sem grandes atropelos.

Quando olho para mim hoje, encontro muitas diferenças. Não no meu íntimo. Esse permanece pouco alterado. Mas nos comportamentos. Na atitude. Na alegria. Na espontaneidade. Fiz toda aquela viagem de acordo com o guia. E não me posso queixar de nada. Tenho saúde, emprego, uma óptima mulher, filhos saudáveis e, aparentemente, felizes. No entanto, devo ter-me esquecido de sair na estação da felicidade. Ou talvez ela se encontre somente na estação terminal. Mas já nem nisso acredito. Constato que a diferença entre estes dois Migueis reside essencialmente na perda de um único e exclusivo factor: O da esperança. É esta que nos move. Que nos faz querer acordar. E quando esta se perde, fica a restar apenas o vazio. Tudo deixa de fazer sentido. Nada do que se possa fazer parece valer a pena. Nada somos. E, por melhor que sejamos, seremos sempre medíocres. As nossas limitações parecem ser incontornáveis. A esperança de encontrar algo em nós digno de louvor fica esmigalhada. E, por melhores qualidades que venha a descobrir em mim, sei que nenhuma contribuirá para alterar a situação.

Talvez o caminho seja através da aceitação. Talvez por aí seja possível restaurar a esperança, para que, cada passo, cada paragem, torne de novo a fazer sentido. Talvez ainda me reste um fiozinho de esperança. Talvez ainda não tenha morrido por completo. Nem ela, nem eu…

 

Na cozinha

 

Se te sentires sozinha

podes vir ter comigo.

Sentamo-nos na cozinha.

Faço dela teu abrigo.

 

Ponho água a aquecer

para fazer uma infusão.

Se quiseres podes dizer

o que te moi o coração.

 

Enquanto não ferver,

se quiseres, podes chorar.

Isso basta para entender.

Não precisas de falar.

 

Quando voltar do fogão

ponho na mesa a chaleira,

faço a preparação

e sento-me à tua beira.

 

E melhor do que contar

podes somente a cabeça

no meu ombro encostar

até que o mal desapareça.

 

Então, como a uma criança,

te aperto contra o meu peito

abandonando a lembrança

de que o chá já está feito.

 

 

Despedida

Fiquei contente quando te vi esta manhã pensando que bom ela já cá está. Mal sabia que te estavas a despedir da praia… pensei que iria ser um dia como os anteriores. Que iria ter a graça da tua presença durante mais uns tempos. O privilégio da tua beleza. A dádiva da tua graciosidade.

Quando regressei à praia, ainda de manhã, e vi a tua palhota abandonada, ocupada somente pelo vazio, animada apenas pelo movimento ondulante das suas franjas, no íntimo percebi que por ali só restava o vento, também ele deambulando saudosamente…

Ainda quis enganar-me a mim mesmo, tentando convencer-me de que tinhas mudado de lugar, como fazem tantos outros. Mas, à tarde, tive a certeza de que tinhas partido. O mar já não brilhava, as ondas já não sorriam, a praia estava vazia. E eu estava ali, sozinho, numa praia cheia de areia e de pessoas.

Bem me pareceu estranho o teu olhar esta manhã. Demorou um pouco sobre mim, mas não dei importância. Agora que partiste, pergunto-me se terá tido alguma. Estarias tu a despedir-te também de mim? Terás reparado alguma vez em mim? Eu que só te observava pelo canto do olho, ou por detrás dos óculos escuros. Terás adivinhado que, enquanto descias com alegria e beleza em direção ao mar, me estavas a encantar mais do que o mais bonito pôr-do-sol? Deixei transparecer o quão me fascinavas?

És tão bonita!

Decerto não foram os meus olhos que me traíram. Talvez tenhas sintonizado os meus pensamentos, e eu sem nunca o perceber. Agora já partiste. E eu não me pude despedir de ti…

 

O cafezinho com a Marisa

A Marisa respondeu à minha mensagem confirmando o nosso encontro para as 18:00, embora tenha deixado claro que às 18:30 teria que sair por causa de um compromisso. Fiquei exultante. Meia hora bastava-me para tirar as imensas saudades que já tinha.

Telefonara-lhe na véspera do dia em que ia regressar a casa, depois de uma semana deslocado em trabalho. Como ia passar na sua terra lembrei-me de combinar um cafezinho. Nem estava a acreditar que finalmente ia estar com ela depois de cinco anos em que apenas nos cruzámos ocasionalmente e sem tempo para grandes conversas.

Conheci-a nos Açores por motivos profissionais. Demo-nos muito bem durante aquele mês em que nos víamos todos os dias. Estávamos muitas vezes juntos. Almocei com ela bastantes vezes, frequentemente a sós. Estávamos muito à vontade um com o outro. Fiquei a gostar muito dela. É um pouco reservada, muito sensata, bonita, com um sorriso só seu, aliás, quase tudo é só seu. A doçura, a voz, o sotaque, o olhar, o nervosismo que se descobre nas suas unhas, a ironia.

Nunca percebi muito bem o que sinto pela Marisa. Nunca senti aquela paixão louca de pensar nela o tempo todo. Apenas uma vontade enorme de estar com ela. Porém, a nenhuma outra mulher escrevi um conto, nem poemas como aqueles que lhe dediquei.

Também nunca percebi o que sentia a Marisa por mim. Declinou alguns convites que lhe fiz, mas aceitou outros que acabaram por não se realizar por minha causa. Nunca acreditei que gostasse de mim mais do que de um amigo. Mas isso também não me importava. Desde que pudesse falar com ela de vez em quando, tudo estava bem. Cheguei mesmo a julgar que as suas inclinações amorosas se dirigiam ao seu género o que até me fez estar mais à vontade, pois deste modo sabia que não iria sofrer por minha causa.

Mas a hora do nosso reencontro finalmente tinha chegado. Estava bastante nervoso. Parei o carro, mal estacionado, na bomba de gasolina que havia mesmo ao lado do seu trabalho. Cheguei dez minutos antes da hora e dei-lhe a conhecer que já lá estava. Respondeu-me que tinha sido agarrada pelo chefe e que ainda iria demorar mais um pouco. Nesse tempo ia imaginando como iria aparecer. Se se teria arranjado para a ocasião. Ia ficando cada vez mais nervoso e, para combater esta ansiedade, decidi abastecer o carro, já que tinha ainda uma longa viagem pela frente.

E foi nessa altura que ela apareceu. Não estava nada como a esperava. A forma como vinha vestida demonstrou que não me queria impressionar. Abri-lhe um sorriso de enorme contentamento e o sorriso com que me retribuiu fez-me esquecer a decepção inicial. Fui estacionar o carro e dirigimo-nos para o café. Íamos conversando enquanto caminhávamos e, com o meu entusiasmo, por vezes tropeçava nas palavras. Ela fez o mesmo por duas vezes, mas nas pedras da calçada, o que fingi não notar. Não estava à espera deste seu nervosismo. Ao mesmo tempo o meu ia-se apaziguando.

Sentámo-nos a uma mesa na esplanada e quando fui lá dentro fazer o pedido referi que era para a mesa onde se encontrava aquela rapariga de calças encarnadas. Este momento provocou-me uma emoção inesperada. Parecia que estávamos juntos desde sempre. Tomámos o café e conversámos muito para além da hora do seu suposto compromisso, até que decidimos ir embora. Acompanhei-a até ao seu carro e custou-me a despedida. Estava mais nervosa agora. Tive que lhe chamar a atenção por causa dos carros. Apeteceu-me tomá-la nos braços e colocá-la no carro em segurança. Apeteceu-me abraçá-la e beijá-la, mas não o podia fazer. Parecia que nem eu nem ela queríamos que aquele encontro terminasse. Mas lá tivemos que nos separar e foi como tivesse sido apartado de mim um pedaço do meu corpo.

Só me apetecia voltar a estar com ela. Passei por lá poucos dias depois, mas não me atrevi a combinar outro encontro. Nenhum outro seria como aquele. Mas dei-lhe a conhecer a minha passagem, na esperança de que me convidasse para nos vermos de novo. Mas não. Desde que nos despedimos fechou-se na sua concha. Deixava as minhas mensagens sem resposta ou, quando muito, respondia por monossílabos. Até que, pressionada por mim, me pediu para deixar de a abordar. Já lá vão mais de dois anos...

Desde então enviei-lhe duas mensagens. Uma foto de uma flor, que já tinha tirado há algum tempo e que só ela conhece o significado e, meses mais tarde, um pequeno poema. Como esperava, nunca me respondeu. Por outro lado, nunca me fechou a porta. Nem estes meus atrevimentos a fizeram bloquear-me, nem mesmo deixar de me seguir nas redes sociais, permanecendo entre nós uma passagem, ainda que muito estreita, suficiente para eu sentir que ela está já ali e assim conseguir suportar o vazio que me provoca a sua ausência.

 

A miúda no comboio

Andar de transportes públicos traz por vezes surpresas agradáveis. Hoje de manhã fui de comboio. A carruagem não ia muito cheia e eu era o único num conjunto de quatro bancos. Na outra ala, nos bancos contíguos, ia uma rapariga que não me chamara ainda a atenção, até porque eu ia a ler um livro. Só reparei nela quando o revisor a repreendeu por não trazer a máscara colocada. Fiquei então a observar a situação. Como ela estava sem máscara, coisa rara nos dias que correm, tive oportunidade de lhe ver o rosto. Era bem bonita! Jovem, cabelos encaracolados cor de mel, não muito compridos. Um rosto com traços arredondados e umas sobrancelhas muito bem desenhadas. Não lhe conseguia ver bem os olhos, pois ela estava de perfil, mas reparei, sobretudo, na sua atitude perante a situação.

Ela não levava máscara porque não tinha. Tinha-se esquecido de trazer de casa. Então, sempre a sorrir, mas sem faltar ao respeito, ia escondendo a cara na gola do seu casaco ao mesmo tempo que se desculpava e dizia que ia sair já na estação seguinte.

Acho que nenhuma autoridade conseguiria resistir àquele seu ar, ao mesmo tempo suplicante, doce e atrevido. O revisor encolheu os ombros e prosseguiu no exercício da sua  principal função.

Entretanto eu já tinha verificado que tinha uma máscara nova que lhe podia dar caso fosse necessário. Não a ofereci logo porque não queria parecer aquele marialva que acende o isqueiro sempre que vê uma donzela a rapar de um cigarro, fazendo-a sentir-se em dívida. Como também ia sair na estação seguinte deixei esse gesto para mais tarde, se viesse a ser necessário.

Quando o comboio começou a abrandar arrumei o livro na mochila e dirigi-me para a porta. Era provável que ela fosse utilizar a mesma porta, a menos que mudasse de carruagem ou optasse pela porta do meio. Ou que não tivesse dito a verdade ao revisor. Felizmente não me enganei. Pouco depois, ela levantou-se também e colocou-se ao meu lado. Os últimos momentos na sua presença estavam agora prestes a terminar e eu não dispunha de tempo para estar com hesitações. Dirigi-me então a ela, tratando-a por tu, contrariamente ao que havia decidido fazer momentos antes, e perguntei-lhe se ia sair por não ter máscara ou se aquele já era o seu destino pré-determinado. Foi nesta ocasião que consegui ver os seus olhos em pormenor. Eram de uma beleza estonteante. De um verde-esmeralda, que combinava com o verde do seu casaco. Com uma tonalidade muito limpa, homogénea e forte. Estes olhos enquadrados pelas suas sobrancelhas eram de cortar a respiração. Ainda por cima sem máscara era-me possível ver todas as suas expressões.

Ela respondeu-me que ia sair ali de qualquer maneira e eu, em vez de lhe perguntar se precisava de uma máscara, até porque ainda teria certo trajeto a percorrer, disse-lhe somente que se precisasse de permanecer no comboio lhe teria cedido uma. Em alturas como esta o meu cérebro fica sem capacidade de resposta e acabo por dizer coisas um bocado estapafúrdias...

A porta acabou por se abrir e eu saí à sua frente virando à direita logo depois, paralelamente ao cais. Não conseguia perceber se ela vinha atrás de mim, na minha direção, pelo que me virei para trás, não só para me esclarecer, como para a ver uma vez mais. Neste breve momento vi, com algum desagrado, que ela tinha seguido em frente, perpendicularmente ao comboio, tornando este momento defenitivamente derradeiro. Mas, sem estar absolutamente à espera, constatei que ela estava com a cara voltada para mim, para se certificar, como certamente adivinhara, que eu me ia voltar para trás para a ver. Ou, também ela, na esperança de me ver pela última vez. O certo é que ela estava com um sorriso que me encheu de alegria. Como já me encontrava sem máscara, acho que ela ainda conseguiu ver o meu. Um sorriso de felicidade que perdurou até agora.

 

 

A tua voz

Gosto de falar contigo.
De ouvir as notas alegres
que entoa a tua voz.
E quando isso acontece,
és como a flor que aparece
no ramo nu da amendoeira.
Ou como a cotovia,
que contente pousa nele,
encantando com o seu canto
e largando logo a seguir,
sem que o possa impedir.
Quando a tua voz se cala,
guardo no meu coração
a sua reverberação
até que voltes a surgir.

 

 

Susana II

(Continuação)

Um pouco antes das 19:00 já estava à porta da clínica à sua espera. Não sabia bem o que lhe iria dizer. Não sabia o que iria fazer caso me quisesse. Não sabia se estava na disposição de deixar a minha família ou se isto era apenas uma loucura. Só sabia que não a queria perder. Mas todas estas dúvidas foram desnecessárias. Ela saiu em linha recta. Com os óculos escuros já postos. Parecia um foguete. Tive que interpelá-la, caso contrário ela seguiria o seu caminho. Percebi logo tudo, claro. Com um ar carregado poupou nas palavras e acabou dizendo-me que estávamos conversados. Eu, sem ter também retirado os óculos escuros, pois não queria que visse os meus olhos sem que pudesse ver os seus, disse-lhe adeus e, orgulhosamente, fui-me embora sem me voltar para trás. A dor que senti foi então lancinante. Comprei um maço de tabaco e deambulei durante mais de uma hora, fumando cigarro atrás de cigarro. Não conseguia chorar. Os meus olhos estavam tão secos como todo eu estava seco.

Nada disto batia certo. A Susana da tarde nada tinha a ver com a da manhã. O facto de ter escondido os olhos por detrás daquelas lentes não ocultou a tristeza que consegui ver nela. Nunca me conformei com este desfecho. Tinha a certeza, admitindo sempre que pudesse estar enganado, de que a sua atitude tinha sido meramente racional. Sabia que se ia casar no mês seguinte. Não o soube por ela, pois nunca a ouvira tocar nesse assunto. Soube-o pelas suas colegas. Não acreditava no seu amor por ele.

Andei sem saber o que fazer. Alimentava uma esperança de a encontrar casualmente pelo que a procurava em todos os sítios para onde ia. Sabia que nos cruzávamos no caminho, em sentidos opostos, pelo que procurava o seu carro entre as centenas que passavam por mim. Por duas ou três vezes a vi, mas de que me servia isso? Perdi o sono e nessas insónias ia elaborando uma carta de despedida para lhe enviar. Andei a escrevê-la às escondidas durante todas as férias de verão. Quando achei que estava pronta, transcrevi-a para papel de carta, para que fosse com a minha letra. Coloquei-a num envelope ligeiramente elaborado, mas sem o perfumar. Enderecei-a a si, mas com ambos os apelidos, o de solteira e o de casada, pois já se encontrava há quatro meses neste estado. Como já sabia a sua hora de saída fui colocá-la, um pouco antes, no para-brisas do seu carro. Tive que me resguardar nas imediações para ter a certeza de que a carta chegava a bom porto. Ela deve ter percebido de imediato de quem era a carta e ainda olhou em seu redor a ver se encontrava o presumível autor, mas não me viu.

Nesse mesmo dia, tal como adivinhara, bloqueou-me nas redes sociais, e nunca mais me lhe dirigi. Continuava inconformado, apesar do tempo que já tinha decorrido desde a última vez que nos víramos. Não havia meio de passar esta minha azia, mas nada mais podia fazer. Foi muito difícil suportar os meses seguintes. Pensava muito nela. Revisitava todos os momentos vividos com ela. Tentava compreender o que se tinha passado e continuava a procurá-la nos sítios para onde ia. Podia ter ido ter com ela ou tê-la contactado utilizando outros subterfúgios, mas sabia que isso a iria afastar ainda mais de mim, pelo que nunca mais a procurei ativamente. Contudo mantinha uma esperança inabalável de que a iria encontrar e de que iríamos finalmente poder cair nos braços um do outro. Pensava na carta que lhe tinha escrito, que acabei por perder o original, por se ter danificado o respetivo ficheiro. Imaginava como teria reagido. No que estaria a sentir. O que teria feito à pequena medalha que lhe havia enviado dentro da carta dizendo-lhe que me tinha acompanhado, ao peito, durante metade da minha existência. Se a usaria ou se a teria deitado fora ou arrumado no fundo de uma gaveta. Por vezes ainda me questiono sobre isto.

Não sei. Nunca mais a voltei a ver. Não acreditava que o destino me iria pregar uma partida destas, mas, a partir de certa altura, comecei a perder a esperança de reencontrá-la. Andei insone e deprimido durante meses. Parei no tempo durante anos. Até me dar conta de que já estava muito mais velho, sem me ter apercebido de como o tempo tinha passado... apenas ao fim de cerca de três anos me apercebi de que não havia pensado nela no dia anterior. Estava finalmente curado! Mas a tristeza e a angústia perduraram por muito mais tempo...

A Susana foi a maior paixão da minha vida. Talvez nunca tenha amado tanto uma mulher como a ela. Foi a mulher que mais me fez sofrer, mas também a que proporcionou dos mais felizes momentos que tive a sorte de experimentar. Hoje em dia raramente penso nela. E quando penso já não me causa sofrimento. Gostava de voltar a encontrá-la, mas já não tenho ilusões.

Mais sobre mim

foto do autor

Nota:

Os nomes aqui citados apenas são verdadeiros nas histórias que são fictícias.

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub