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O que fica na gaveta

Miguel Lucas

O que fica na gaveta

Miguel Lucas

O passageiro do seu lado esquerdo

Quando me sentei e vi de quem ia ficar ao lado não fiquei logo entusiasmado, mas fiquei curioso. Deve andar pelos quarenta. Muito direitinha, já com o cinto de segurança apertado, olhando em frente, sem grandes movimentações. Apesar de já não ser obrigatório, estava de máscara. Fiquei curioso, é verdade. Fiquei também um pouco despeitado por não se mostrar minimamente interessada na minha pessoa. Já prestes a levantar voo para regressar ao meu querido país, ela começa a preparar-se para a viagem que iria durar apenas duas horas, tempo suficiente para se ficar enregelado caso não se tomassem as devidas precauções. Pelo seu ritual via-se que era uma habitué. Com casacos e camisolas improvisou duas mantas, uma para as pernas e outra para os ombros, até que o desassossego terminou. Da minha parte apenas deslizei até cima o fecho-éclair do casaco. Como eu estava do lado da coxia, a janela era um óptimo pretexto para poder tranquilamente observá-la, embora apenas de perfil. Nem sequer um pouco enviesada a consegui ver. Os seus olhos cor de mel, juntamente com as pestanas e as sobrancelhas, eram impressionantes. Davam vontade de me diluir neles.

Sempre na esperança de que se dignasse olhar para mim acabei por começar a adormecer. Neste estágio dei por mim a perguntar aos meus botões, ou melhor, ao meu fecho-éclair, que seria se lhe desse a mão. Um gesto que estava mesmo ali ao meu alcance. Mais fácil do que pedir um copo de água. Claro que não o fiz. Perante a indiferença às minhas mal disfarçadas investidas o certo era que a coisa não fosse correr bem. Não levaria um estalo, mas de um gesto brusco não me livraria pela certa. Contudo, ainda dei espaço à incerteza pensando como seria se acontecesse o oposto. Se partisse dela a iniciativa de me dar mão. Claro que não rejeitaria a sua mão, com aqueles dedos esguios e delicados, de unhas bem recortadas e desprovidas de pintura. Acho que começaria a pairar como se a aeronave perdesse de repente a sustentação...E continuei este diálogo comigo próprio, maldizendo a Mãe Natureza por não ter promovido maior igualdade de género nas respostas a este tipo de iniciativas.

Quando acordei ela estava com a mesma postura, mas agora entretida com o telemóvel. Fui deitando o rabo do olho para tentar confirmar, com base no que ela estava a ver, se era portuguesa ou não, mas não me dava grandes hipóteses, colocando a mão esquerda de maneira que eu não conseguisse ver nada. Excepto que estava despida de qualquer anel, informação tão ou mais útil do que a que pretendera saber. Do outro lado seguia outro passageiro que esteve quase todo o tempo a dormir, mas que deu para perceber que não lhe era nada. Pensei sacar do livro que ando a ler não só para me ocupar como também para mostrar um certo nível de erudição que presumi poder marcar pontos a meu favor, mas, pela falta de originalidade, já que muitos à nossa volta estavam a fazer o mesmo, e aproveitando a amálgama de pensamentos que me estava a ocorrer bem como uma coisa que acabara de fazer sem que a devesse ter feito, optei por começar a redigir este post.

Ou seja, neste momento em que estou a escrever ela está aqui ao meu lado, não fazendo a mínima ideia de que estou a escrever sobre si. Nem o vai saber mesmo que queira, pois a minha letra até eu tenho dificuldades em compreender. Pelo menos para já, uma vez que há pouco, quando se ausentou, enfiei nos seus pertences um bilhetinho onde escrevi: "oqueficanagaveta.blogs.sapo.pt  - o passageiro do seu lado esquerdo". Isto significa que neste momento, e agora refiro-me ao momento em que o leitor está a percorrer estas linhas, ela pode já ter feito o mesmo. E pode também ter lido os meus posts anteriores e ter percebido que não sou de fiar, o que não abona nada a meu favor, mas, ainda assim, com o que decidi apesar de tudo publicar, há de ficar no mínimo um pouco lisonjeada. Como irá reagir é que é uma caixinha de surpresas. A profusão de possibilidades daria para escrever um romance, embora o mais provável seja que nada aconteça. Nem sequer noto curiosidade da parte dela em ver o que estou para aqui a escrever... Agora vou pôr o caderno de lado que já estamos quase a tocar na pista.

P.S. Assim que aterrámos ela tirou a máscara o que não me desiludiu de maneira nenhuma. Estava à espera de que nesta altura conseguisse obter alguma atenção da sua parte, mas qual quê. Saí à sua frente e entrei no autocarro na porta do meio na esperança de que me seguisse. Não é que se enfiou na porta de trás sentando-se numa cadeira virada para trás e não me dando qualquer hipótese. Afinal não queria mesmo nada comigo. Um desinteresse mais do que completo. Já no aeroporto desviou-se para o lavabo e eclipsou-se de vez. Nem enquanto esperava pela mala a vi passar. E agora o papelinho está com ela e já não há nada a fazer... ou será que também sonhei com isto?

 

O melhor amigo

Ainda tenho um papel, numa caixa onde sobrevivem alguns resquícios da minha infância, onde ficou atestado, preto no branco, sob a forma de uma cruz no quadradinho do sim, que eu era o seu melhor amigo. Estávamos no 5º ano, ou seja, tínhamos 10 anos de idade. Por obra do acaso tive a sorte de ter como colega de carteira uma miúda excepcional, que entrara na escola nesse mesmo ano, a Vera. À medida que o tempo ia passando a amizade que lhe tinha ia ficando mais forte. Quando lhe fiz aquele questionário já não era só seu melhor amigo que queria ser. Gostava que ela sentisse por mim algo equivalente ao desassossego que me inquietava sempre que estava com ela. Mas ser melhor amigo não significava que essa porta estivesse fechada e a esperança ia transformando cada dia num novo desafio.

No final do ano letivo, naquela altura em que a natureza pinta de alegria tudo o que nos rodeia, em que os sorrisos nos rostos são mais abertos e os olhos mais brilhantes, em que a despedida dos agasalhos corresponde a uma libertação de nós mesmos e em que parece que nos movemos num mundo de fantasia, houve uma festa de anos na qual não pude estar presente. Na segunda-feira seguinte notei que esta alegria estava impressa na Vera de uma forma ainda mais viva, mas não percebi logo porquê. Soube mais tarde que nesta festa um colega dançou com ela e que até lhe terá dado um beijinho na boca. Pelos risinhos invejosos das amigas e pelo que fui ouvindo aqui e ali, percebi que ser mais do que um amigo estava agora fora do meu alcance. E foi nesse dia, pela primeira vez na vida, que senti o que é ter a alma na sola dos pés e como a Primavera pode perder o seu encanto de um momento para o outro.

Passado não muito tempo o ano letivo findou, a Vera mudou de escola e eu nunca mais soube nada dela. No ano seguinte tive algumas paixões, mas daquelas em que se enviam papelinhos com corações rachados e que não deixam qualquer cicatriz. Ainda gostava da Vera e tinha muitas saudades dela. No outro ano, já o 7º, gostei mais a sério de uma colega, mas o meu coração ainda estava dividido. Acho que ainda escolheria a Vera, se me aparecesse à frente. Mas, aos poucos, e como sempre, o tempo lá se encarregou de apagar os vestígios deste meu primeiro grande amor.

Naquele questionário também ficou escrito o seu nome completo e a sua morada, mas acabaram por nunca servir para coisa alguma. Nessa altura tinha uma capacidade de aceitação dos factos que, infelizmente, hoje não tenho. Nunca me ocorreu que lhe poderia escrever uma carta e ela nunca chegou a saber que fui mais do que um seu amigo. Nem tão pouco serviu para, mais recentemente, encontrar algo a seu respeito na internet, o que fiz apenas por curiosidade e sem grande empenho. A recordação que tenho dela é tudo quanto me basta.

 

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Nota:

Os nomes aqui citados apenas são verdadeiros nas histórias que são fictícias.

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