Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O que fica na gaveta

Miguel Lucas

O que fica na gaveta

Miguel Lucas

Na festa dos Santos Populares

No outro dia fui levar a minha filha à festa dos Santos Populares e quando a deixei com os seus amigos decidi ficar por lá. Depois de perceber para que lado se dirigiam, avancei para o lado oposto por entre uma multidão, tal como eu, ávida de um evento como este, depois de três anos de privação forçada.

Tentei abster-me de me focar no pormenor, concentrando-me em observar o espaço em redor como um todo, a ponto de não procurar reconhecer qualquer cara familiar. À medida que me ia aproximando da zona das diversões a população ia ficando mais compacta. As luzes e o som ganhavam intensidade e ia-me cruzando com mais e mais gente. Ia-me deparando psicadelicamente com caras alegres, sorrisos rasgados, bijuterias cintilantes, olhos brilhantes e bonitos, calças justas, ombros à vista, cabelos longos, pretos, castanhos, grisalhos, louros não tantos. Risos, muitos risos. E com as luzes dos equipamentos lúdicos. Intensas, coloridas de azul, amarelo, branco, verde, laranja, violeta, que acendiam e apagavam ao ritmo dos suspiros breves e agudos dos pistões de ar comprimido, num incessante corrupio que conferia ao meio envolvente um ambiente surreal onde sabia bem estar mergulhado. Aos sons de fundo constantes sobrepunham-se os gritos extasiados das crianças e dos adultos, quando eram sacudidos ou desciam vertiginosamente suspensos nos braços mecânicos e gigantes que os manipulavam entre o chão e as estrelas. Ou quando ficavam repentinamente de pernas para o ar, com os cabelos literalmente em pé, embora neste caso com as raízes voltadas para cima, por força da gravidade que nunca nos abandona. De quando em vez reverberava uma voz masculina, grave e melosa, amplificada um sem número de vezes, com a finalidade de atrair clientela para o seu específico equipamento, que proporcionaria indubitavelmente emoções jamais sentidas. Deambulei neste delírio por mais algum tempo, quase me sentindo numa discoteca depois de ingerido algum álcool.

Dirigi-me então ao extremo oposto da feira onde estava a decorrer um concerto. Comecei por ouvir, ver e sentir as primeiras músicas a partir de cá de trás. Mas o vocalista tinha uma energia surpreendente e puxava pelo público freneticamente. As luzes e os sons não eram agora menos intensos nem menos contagiantes. Passado pouco tempo já estava no centro da plateia. Todos púnhamos os braços no ar e saltávamos, incitados pelo cantor, mas acabei por recuperar a compostura depois de ganhar consciência de que os amigos da minha filha poderiam estar a ver-me. De onde me situava agora era possível ver melhor uma das artistas do coro que me chamara a atenção. Era muito bonita e a sua voz, também encantadora, sobressaía em relação às demais. Tinha muita energia, não impedindo que o seu corpo acompanhasse o ritmo da música. Elevava os pés alternadamente, balanceando de forma muito sensual as ancas, das quais, propositadamente, concedia entrever uma porção da sua pele, entre as calças de ganga, largas e ligeiramente descaídas, e as cavas do corpete que ostentava. Uma delícia! Fui me maravilhando com toda esta oferta de sensações até que o concerto acabou por terminar, já depois de o público nada mais conseguir fazer para que a banda regressasse. Nesta altura, atraído por uma força que não a da gravidade, já eu me encontrava a apenas escassos metros do palco. Mas já nada mais havia ali a fazer. Fui então ter com a minha filha que também estava ainda atordoada, mas com as reviravoltas que dera no rei dos baloiços. Percorremos os dez minutos que nos separavam do carro, regressando gradualmente, cada um à sua maneira, a este mundo real.

 

 

As flores do jardim

 

Este mundo é um jardim

onde há muita flor bonita.

Gosto muito do jasmim,

da orquídea e da tulipa.

 

E nem sei lá muito bem

de qual delas gosto mais.

Mas não ferem ninguém

as preferências naturais.

 

No que respeita a gente,

não foi assim que se fez.

Decretou-se sabiamente

uma amar de cada vez.

 

Acontece que o amor,

é como a erva daninha:

irrompe com seu vigor

onde menos se adivinha.

 

E se brota outra flor

que encanta o meu ser,

o que me causa mais dor

é não a poder colher.

 

Mais sobre mim

foto do autor

Nota:

Os nomes aqui citados apenas são verdadeiros nas histórias que são fictícias.

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub