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O que fica na gaveta

Miguel Lucas

O que fica na gaveta

Miguel Lucas

Olhares perdidos

Converso com ela há muito tempo. Raro usamos palavras, somente o olhar. Digo-lhe bom dia, boa tarde ou boa noite. Pergunto-lhe como está. Digo-lhe como é linda. Digo-lhe como a admiro, como a amo. Digo-lhe o quanto desejava tê-la nos braços.

Ela também fala comigo. Diz-me o quão lisonjeada se sente. Diz-me que se sente feliz. Procura-me. Diz-me que também me ama. Mais claramente do que com palavras. Estas podem mentir. O olhar não.

Por vezes temos conversas de circunstância. Mas já tivemos conversas muito longas. Onde apenas dissemos o nosso amor. O que só com o olhar se pode dizer durante tanto tempo. De forma longa, mas não repetitiva. Outras vezes, muitas é certo, desviamos o olhar. Por causa das circunstâncias. Por nos estar interdito amarmo-nos.

Agora ela vai ser mãe e eu já não sei o que pensar das conversas que tivémos. Talvez me tenham mentido os meus olhos, afinal. Agora não pode haver mais conversas e os meus olhos enchem-se de lágrimas.

 

 

Helena

Confesso que estava um pouco ansioso por reencontrar a Helena depois de um ano sem a ver. Ela é muito bonita. Tem uns olhos de cristal, azuis, que estão sempre a sorrir ainda que o seu semblante se apresente mais sério, o que não é raro tendo em conta os seus azeites. Não resisti descer até à água, fingindo querer refrescar-me, para cumprimentar os seus pais e aproveitar, objetivo principal, para cumprimentá-la também, quando subisse, ao passar na sua palhota. Quando o fiz só lá estava a irmã com as suas amigas. Não reparei que na palhota ao lado a jovem que estava aparentemente a dormir, de barriga para baixo, era ela. Cumprimentei a irmã, que me respondeu a contragosto, e quando me dirigia para a minha palhota, três casas ao lado, na fila seguinte, a Helena me interpelou, de um salto, para me cumprimentar. Tentei refazer-me do calafrio o mais rapidamente possível para disfarçar ao máximo todas as emoções que se me afloraram naquele instante, ao mesmo tempo que procurava palavras para lhe dizer que parecessem adequadas ao reencontro entre um senhor já entrado e uma amiga da sua filha… E tudo isto com uma plateia imensa, de gente conhecida, a observar a cena, parecendo já adivinhar o enredo que sobremaneira fui tentando camuflar. Acho que disfarcei bem, mas a minha alegria e atrapalhação não escaparam certamente à astucia da Helena. Ela é muito mais do que linda… Que sensação! Que miúdo eu sou. Como pode uma mulher de apenas vinte anos ter este efeito num homem já de meia-idade? Fui para a palhota e sentei-me para me recompor, deixar o coração voltar ao seu lugar, depois de ter descido ao estâmago e subido à garganta. Mais calmo, decidi descer até à água para me banhar um pouco, bendizer a vida, apreciar a beleza da praia e descansar o olhar sobre a Helena apenas um pouco mais. Como se este presente não bastasse, tive a imerecida sorte de poder vê-la descer para também se banhar e ainda tê-la como companhia por alguns minutos, até decidirmos todos voltar para os nossos cómodos. Talvez ela não saiba que me fez ganhar as férias. E eu também não sei que raio de efeito tive sobre ela. Mas deixem-me acreditar que este nosso encontro teve algo que ver com aquele brilhozinho que vi no seu olhar… E é assim que vai vivendo um incorrigível canalha.

 

Anda comigo

Vem comigo passear. Passo por aí a

buscar-te no meu cavalo castanho.

 

Sobes para a garupa e agarras-te bem

a mim para não caíres.

 

Vamos por montes e vales com os

teus cabelos ao vento.

 

Vamos até ao mar e, de mãos dadas,

olhar o oceano e imaginar que do

outro lado há um lugar que é só nosso.

 

Anda comigo. Talvez te faça rir e as tuas

gargalhadas me façam doer o coração

de tanto o encherem de felicidade.

 

Anda. Faço te uma maldade só para vires

a correr atrás de mim e eu poder demorar

um pouco até me deixar apanhar,

muito antes de ficares furiosa.

 

Deixa-me correr atrás de ti, com o teu

vestido leve a esvoaçar, rindo-te da

vingança que perpetraste.

 

Vem comigo. Depois, ofegantes, deitamo-

-nos no chão a olhar para o céu para

vermos passar as nuvens e esperar que a

noite chegue.

 

Fica comigo até se verem as estrelas, para

vermos os cometas a atravessar o céu e o

meu cavalo castanho connosco em cima.

 

Anda passear comigo. Entra comigo neste

sonho e vamos sonhar que estamos acordados.

 

A ver se te vejo

sempre que vou pela rua
ando a ver se te vejo
cuidando também ser tua
a vontade de um beijo

sentires amor por mim
é com o que vou sonhando
e é por achar que sim
que a ver se te vejo ando

mesmo quando acho que não
continuo a querer ver-te
não me sais do coração
não consigo esquecer-te

se me disseres vagamente
que não te inspiro desejo
então irei prontamente
deixar de ver se te vejo

mas se eu for do teu agrado
nesse caso nada digas
ver-te-ei sempre a meu lado
por onde quer que sigas

 

A rosa amarela

Ultimamente tenho viajado bastante. Vou a terras longínquas. A outros planetas, como fazia o Principezinho. Numa dessas viagens encontrei uma rosa. De início, também era igual a tantas outras rosas. Era uma rosa amarela. Não daquele amarelo vaidoso, quase laranja. Nem daquele que se confunde com o branco. Era de um amarelo limão. Sim, era isso. Um amarelo fresco e alegre, a lembrar o Verão. Mal vi aquela rosa achei-a bonita, como aliás são todas as rosas. Mas cedo comecei a diferenciá-la das outras, porque passava por aqueles lados algumas vezes.

Quando passava deitava-lhe sempre o olho e cumprimentava-a cordialmente. Ela retribuía com a mesma moeda. Era uma rosa simpática, falava muito bem a toda a gente. Era mais atenciosa com os humildes mostrando-lhes sempre o seu lindo sorriso e espalhando alegria à sua volta. Ela deixava-os contentes e com mais vontade de trabalhar. E isso ainda me fazia gostar mais dela. Com os seus iguais não se deixava ficar. Tinha resposta pronta e era muito sensata merecendo por isso bastante respeito. Aquela rosa começou a cativar-me e percebi que também a cativava. Pelo menos um pouco. Porque quando gostamos de uma rosa e lhe damos atenção, uma atenção desinteressada, essa rosa também gosta de nós. E foi isso que acho que aconteceu.

Houve uma altura em que começámos a conversar. Sentava-me no chão ao seu lado e ia-lhe contando um pouco da minha vida. Ela gostava mais de ouvir do que de falar e ia-me ouvindo com atenção parecendo gostar do que lhe dizia. Mas mesmo sem falar nada sobre si mesma eu ia percebendo, pelas suas expressões, pelo seu olhar, pelos seus gestos tímidos, como é que ela era. E eu não me calava. Não era por medo de um vazio de conversa. Era mesmo porque ela parecia interessada em saber. E assim fomos ficando amigos. É boa a amizade. Faz-nos esquecer todo o resto, parecendo ser a coisa mais importante. É mesmo a coisa mais importante.

Enquanto estava naquele planeta a rosa amarela, cor de limão, era muito importante para mim. Mas chegou o dia em que tinha de voltar para o meu lar. Tive pena de deixar a rosa amarela e não sabia se regressaria àquele planeta. Quando nos despedimos ela deu-me um beijo na cara o que me surpreendeu, por um lado, mas veio a confirmar a ideia que tinha dela. Fiquei mais contente do que triste pois sabia que mesmo que não voltasse a encontrá-la podia escrever-lhe do meu planeta e que, para os amigos, muitos anos são como se fossem dias.

 Escrevi-lhe algumas vezes e ela ia-me respondendo, embora demorasse mais tempo do que aquilo que eu desejava. Mas sabia que era uma rosa muito viva e que tinha muito a fazer com as outras rosas. Para além disso também não gostava de escrever. E muito menos sobre ela, claro.

Numa dessas cartas explicou-me que gostava mais de desenhar e que desse modo conseguia falar sobre si mesma. Fiquei logo muito curioso acerca dos seus desenhos porque mesmo conhecendo um pouco da sua essência, uma pessoa gosta sempre de saber o que uma rosa tem para contar. Saber de onde veio; que vento levou a sua semente para aquele planeta; do que é que gosta mais de fazer, essas coisas mundanas e também outras mais sérias. Porque todos nós temos coisas mais sérias para contar a alguém. Um dia hei-de ver um ou outro desenho seu.

Mais tarde, numa altura em que a órbita do seu planeta passou mais perto da Terra, quis encontrar-me com ela. E foi o que combinámos. No dia do nosso encontro uma brisa terrestre, vinda do polo-Norte, não lhe fez nada bem e marcámos para outro dia. No início achei que tivesse sido uma desculpa e que ela não estivesse para me aturar. Mas acho que estava errado, o que me acontece muitas vezes. Sobretudo quando tento adivinhar pensamentos de rosas.

Essa altura foi muito confusa. Desmarquei o nosso encontro. Mas depois quis outra vez encontrar-me e combinámos que o faríamos quando a órbita dos nossos planetas se aproximasse outra vez. Não sei daqui a quanto tempo. Acho que ficou com medo de que eu quisesse arrancá-la da sua terra para a plantar na minha, ficando longe do seu planeta ameno e sentindo-se muito sozinha ali enquanto eu andava na minha vida. Mas não era isso que eu queria. Queria apenas estar mais um pouco com ela. Ela não me disse isto pois as rosas nunca mostram o que sentem, muito menos esta rosa. E o que eu mais fazia era adivinhar os seus pensamentos. Mas como é que um homem consegue adivinhar os pensamentos de uma rosa?

Agora os nossos planetas já estão um pouco afastados, mas quando o vento vem de feição ainda sinto o aroma das suas pétalas. Embora já não nos correspondamos tanto, guardo sempre esta rosa no meu coração e acho que com ela também acontece o mesmo. 

Em vez da tristeza da saudade tenho a alegria de nos termos pertencido um pouco. E quando fecho os olhos, se quiser, consigo vê-la. Com a sua cor amarela, mas de um amarelo limão. Um amarelo fresco e alegre a lembrar o Verão.

Abril de 2015

 

 

Não quero mais

Não quero mais fingir que nada estou a sentir

Não quero mais calar o que te devia ocultar

Queria estar contigo e não fazer ninguém sofrer

Queria não sofrer quando não te posso ver

Queria ficar preso sempre no teu lindo olhar

Queria te abraçar e a tua alma aconchegar

Queria que pudesses estender-me a tua mão

Queria que me amasses do fundo do coração

Queria ter a virtude de te saber esperar

Mesmo que a meu lado nunca venhas a ficar

 

 

O passageiro do seu lado esquerdo

Quando me sentei e vi de quem ia ficar ao lado não fiquei logo entusiasmado, mas fiquei curioso. Deve andar pelos quarenta. Muito direitinha, já com o cinto de segurança apertado, olhando em frente, sem grandes movimentações. Apesar de já não ser obrigatório, estava de máscara. Fiquei curioso, é verdade. Fiquei também um pouco despeitado por não se mostrar minimamente interessada na minha pessoa. Já prestes a levantar voo para regressar ao meu querido país, ela começa a preparar-se para a viagem que iria durar apenas duas horas, tempo suficiente para se ficar enregelado caso não se tomassem as devidas precauções. Pelo seu ritual via-se que era uma habitué. Com casacos e camisolas improvisou duas mantas, uma para as pernas e outra para os ombros, até que o desassossego terminou. Da minha parte apenas deslizei até cima o fecho-éclair do casaco. Como eu estava do lado da coxia, a janela era um óptimo pretexto para poder tranquilamente observá-la, embora apenas de perfil. Nem sequer um pouco enviesada a consegui ver. Os seus olhos cor de mel, juntamente com as pestanas e as sobrancelhas, eram impressionantes. Davam vontade de me diluir neles.

Sempre na esperança de que se dignasse olhar para mim acabei por começar a adormecer. Neste estágio dei por mim a perguntar aos meus botões, ou melhor, ao meu fecho-éclair, que seria se lhe desse a mão. Um gesto que estava mesmo ali ao meu alcance. Mais fácil do que pedir um copo de água. Claro que não o fiz. Perante a indiferença às minhas mal disfarçadas investidas o certo era que a coisa não fosse correr bem. Não levaria um estalo, mas de um gesto brusco não me livraria pela certa. Contudo, ainda dei espaço à incerteza pensando como seria se acontecesse o oposto. Se partisse dela a iniciativa de me dar mão. Claro que não rejeitaria a sua mão, com aqueles dedos esguios e delicados, de unhas bem recortadas e desprovidas de pintura. Acho que começaria a pairar como se a aeronave perdesse de repente a sustentação...E continuei este diálogo comigo próprio, maldizendo a Mãe Natureza por não ter promovido maior igualdade de género nas respostas a este tipo de iniciativas.

Quando acordei ela estava com a mesma postura, mas agora entretida com o telemóvel. Fui deitando o rabo do olho para tentar confirmar, com base no que ela estava a ver, se era portuguesa ou não, mas não me dava grandes hipóteses, colocando a mão esquerda de maneira que eu não conseguisse ver nada. Excepto que estava despida de qualquer anel, informação tão ou mais útil do que a que pretendera saber. Do outro lado seguia outro passageiro que esteve quase todo o tempo a dormir, mas que deu para perceber que não lhe era nada. Pensei sacar do livro que ando a ler não só para me ocupar como também para mostrar um certo nível de erudição que presumi poder marcar pontos a meu favor, mas, pela falta de originalidade, já que muitos à nossa volta estavam a fazer o mesmo, e aproveitando a amálgama de pensamentos que me estava a ocorrer bem como uma coisa que acabara de fazer sem que a devesse ter feito, optei por começar a redigir este post.

Ou seja, neste momento em que estou a escrever ela está aqui ao meu lado, não fazendo a mínima ideia de que estou a escrever sobre si. Nem o vai saber mesmo que queira, pois a minha letra até eu tenho dificuldades em compreender. Pelo menos para já, uma vez que há pouco, quando se ausentou, enfiei nos seus pertences um bilhetinho onde escrevi: "oqueficanagaveta.blogs.sapo.pt  - o passageiro do seu lado esquerdo". Isto significa que neste momento, e agora refiro-me ao momento em que o leitor está a percorrer estas linhas, ela pode já ter feito o mesmo. E pode também ter lido os meus posts anteriores e ter percebido que não sou de fiar, o que não abona nada a meu favor, mas, ainda assim, com o que decidi apesar de tudo publicar, há de ficar no mínimo um pouco lisonjeada. Como irá reagir é que é uma caixinha de surpresas. A profusão de possibilidades daria para escrever um romance, embora o mais provável seja que nada aconteça. Nem sequer noto curiosidade da parte dela em ver o que estou para aqui a escrever... Agora vou pôr o caderno de lado que já estamos quase a tocar na pista.

P.S. Assim que aterrámos ela tirou a máscara o que não me desiludiu de maneira nenhuma. Estava à espera de que nesta altura conseguisse obter alguma atenção da sua parte, mas qual quê. Saí à sua frente e entrei no autocarro na porta do meio na esperança de que me seguisse. Não é que se enfiou na porta de trás sentando-se numa cadeira virada para trás e não me dando qualquer hipótese. Afinal não queria mesmo nada comigo. Um desinteresse mais do que completo. Já no aeroporto desviou-se para o lavabo e eclipsou-se de vez. Nem enquanto esperava pela mala a vi passar. E agora o papelinho está com ela e já não há nada a fazer... ou será que também sonhei com isto?

 

O melhor amigo

Ainda tenho um papel, numa caixa onde sobrevivem alguns resquícios da minha infância, onde ficou atestado, preto no branco, sob a forma de uma cruz no quadradinho do sim, que eu era o seu melhor amigo. Estávamos no 5º ano, ou seja, tínhamos 10 anos de idade. Por obra do acaso tive a sorte de ter como colega de carteira uma miúda excepcional, que entrara na escola nesse mesmo ano, a Vera. À medida que o tempo ia passando a amizade que lhe tinha ia ficando mais forte. Quando lhe fiz aquele questionário já não era só seu melhor amigo que queria ser. Gostava que ela sentisse por mim algo equivalente ao desassossego que me inquietava sempre que estava com ela. Mas ser melhor amigo não significava que essa porta estivesse fechada e a esperança ia transformando cada dia num novo desafio.

No final do ano letivo, naquela altura em que a natureza pinta de alegria tudo o que nos rodeia, em que os sorrisos nos rostos são mais abertos e os olhos mais brilhantes, em que a despedida dos agasalhos corresponde a uma libertação de nós mesmos e em que parece que nos movemos num mundo de fantasia, houve uma festa de anos na qual não pude estar presente. Na segunda-feira seguinte notei que esta alegria estava impressa na Vera de uma forma ainda mais viva, mas não percebi logo porquê. Soube mais tarde que nesta festa um colega dançou com ela e que até lhe terá dado um beijinho na boca. Pelos risinhos invejosos das amigas e pelo que fui ouvindo aqui e ali, percebi que ser mais do que um amigo estava agora fora do meu alcance. E foi nesse dia, pela primeira vez na vida, que senti o que é ter a alma na sola dos pés e como a Primavera pode perder o seu encanto de um momento para o outro.

Passado não muito tempo o ano letivo findou, a Vera mudou de escola e eu nunca mais soube nada dela. No ano seguinte tive algumas paixões, mas daquelas em que se enviam papelinhos com corações rachados e que não deixam qualquer cicatriz. Ainda gostava da Vera e tinha muitas saudades dela. No outro ano, já o 7º, gostei mais a sério de uma colega, mas o meu coração ainda estava dividido. Acho que ainda escolheria a Vera, se me aparecesse à frente. Mas, aos poucos, e como sempre, o tempo lá se encarregou de apagar os vestígios deste meu primeiro grande amor.

Naquele questionário também ficou escrito o seu nome completo e a sua morada, mas acabaram por nunca servir para coisa alguma. Nessa altura tinha uma capacidade de aceitação dos factos que, infelizmente, hoje não tenho. Nunca me ocorreu que lhe poderia escrever uma carta e ela nunca chegou a saber que fui mais do que um seu amigo. Nem tão pouco serviu para, mais recentemente, encontrar algo a seu respeito na internet, o que fiz apenas por curiosidade e sem grande empenho. A recordação que tenho dela é tudo quanto me basta.

 

Paixão absurda

Já tive muitas paixões. Comecei na primeira classe, apaixonando-me pela menina mais bonita da aula. Depois tive muitas mais, mas não tantas que não as consiga contar. Lembro-me de cada uma delas, e de quase todas guardo ainda muito carinho. Raras são as que fingiria não ver se com elas me cruzasse no caminho.

A paixão não se escolhe, embora num ou noutro caso a tenha querido forçar, na busca de um lucro fácil, mas sempre com resultados insatisfatórios. Também não se pode evitar. Quando acontece geralmente é terrível pois na maioria das vezes, e pelas razões mais diversas, ela não se pode concretizar. Há paixões absurdas, de tão impossíveis que são. Mas isso só prova que não são uma escolha. Já tive paixões de caixão à cova que, não sendo assim tão irracionais, não resultaram em nada. Mas tive uma que não podia ser mais impossível.

Há mulheres muito bonitas. A beleza é uma dádiva da natureza que muito beneficia quem a recebe. Algumas deixam-me atarantado na primeira vez que as vejo, mas passado algum tempo, que pode ser de segundos ou de dias, deixam de me impressionar. Tem de haver um je ne sais quoi para que a paixão aconteça. O certo é que nunca me apaixonei por uma mulher feia, o que é tremendamente injusto. Todavia, a mulher que despertou maior paixão em mim, nem foi a mais bonita. Foi aquela cujas imperfeições se tornaram preciosidades. Ao ponto de me confundir se gostei dela por causa das suas singularidades ou se foi o contrário. E as particularidades que à primeira vista poderiam ser motivo de repulsa, são muitas vezes as que me fazem sentir maior carinho pela sua detentora. São a sua marca registada, o seu cunho próprio, a sua assinatura. São aqueles traços que relembro quando penso nela e me fazem suspirar...

Houve uma vez uma mulher deste tipo, para mim perfeita, que mal a vi fez-me desligar de tudo o que não fosse exclusivamente ela. Fez-me querer saber tudo a seu respeito e fez-me querer voltar a vê-la. Sempre que a via sentia uma emoção difícil de explicar: uma contração do diafragma descontinuando a acção de respirar; uma descontração dos músculos faciais provocando um sorriso nos lábios e nos olhos, sendo o primeiro bastante aparvalhado; um deslumbramento suspenso; uma sensação de falta de espaço na caixa torácica para alojar o coração; uma vontade imensa de lhe dizer que a amo; uma vontade de trazer uma imagem sua sempre comigo, junto ao peito... Quando a tornava a ver estes sentimentos iam-se intensificando, independentemente do contexto onde a via ou de como se apresentava. Sempre que a via parecia conseguir ver a sua essência admirável e era esta que me deixava naquele estado. Mas o pormenor que deitava por terra toda e qualquer possibilidade de nos podermos vir a amar era o facto de só a ver e conhecer através das personagens que interpretava para o grande ecrã...

Viciado em ti

Quando estou perto de ti, quando estás ali, a apenas escassos metros de mim, e tenho possibilidade de te observar, não resisto a demorar o meu olhar sobre ti. Gosto de olhar os contornos do teu rosto, as curvas das tuas sobrancelhas o jeito único do teu longo cabelo preto. E melhor que as emoções que experimento nestes momentos, só mesmo se pudesse estar ao teu lado, partilhar contigo aquilo que sou, partilhares comigo aquilo que és. De onde vem o meu amor? porque desejo tanto que um dia fiquemos juntos? Porque me questiono tanto se isso um dia virá a acontecer? Porque tantas vezes tenho o pressentimento de que isso vai acontecer? Não é que sejas minha o que eu quero. Quero antes ser teu. Quero dar-me a ti completamente. Por vezes vejo-te olhar rapidamente para mim e não consigo adivinhar no que estás a pensar. Mas não encontro censura nos teus olhos. Quando penso em ti apetece-me escrever. Deixar rolar a ponta da caneta ao sabor dos pensamentos. Deixá-la gravar as curvas e contracurvas das letras como se os teus cabelos sedosos e encaracolados estivesse a desenhar. E ponho-me a imaginar como seria se pudéssemos passear de mãos dadas. Sentir-me-ia o homem mais feliz do mundo se isso acontecesse. Este desejo de te encontrar para te poder ver parece nunca se desvanecer. Não quero pensar que este amor um dia vai terminar. Quando olho para ti ele é sempre eterno. E recíproco. Não quero pensar que não o possa ser. Apenas a tua doçura me importa quando te vejo. E o meu amor por ti deixa de caber em mim. E desejo voltar a ver-te. Acho que estou viciado em ti.

 

 

Este mundo paralelo

Criei este blog para poder publicar textos que de outro modo ficariam fechados na gaveta. Por meio de um pseudónimo poderia libertar-me e dizer o que quisesse sem que ninguém saísse magoado, inclusivamente eu próprio. Foi assim que nasceu o Miguel Lucas. No início, como Miguel, sob a capa do anonimato, sentia-me livre. Escrevi textos que revelaram traços da minha personalidade que na vida real sou obrigado a esconder, o que foi bastante libertador.

O amor foi o tema mais abordado. Aquele que é mais complexo e dado a abrir mais feridas. Aquele onde mais temos de calar. O amor proibido. O amor reprimido. O amor impossível. Porque amor não sei se é o que mais tenho ou se é o que mais me falta...

Contudo, com o tempo, o tema começou a esgotar-se. Num período muito curto esvaziei todo o meu conteúdo. De acontecimentos passados e de outros que tive o privilégio de viver nesse mesmo período. Mas, na verdade, não o esvaziei totalmente. Houve um fenómeno que fez com que a gaveta se tornasse a fechar e que os textos deixassem de proliferar. Não por serem indecorosos, mas por uma outra razão, muito simples: comecei a conhecer pessoas neste mundo paralelo! Comecei a gostar delas e comecei a sentir pudor. E este mundo passou a ser uma réplica do real, onde fico acorrentado pelo medo de desiludir, de ser incorreto, resguardando-me muitas vezes no conforto do silêncio.

A primeira vez que tomei consciência deste facto foi quando publiquei um poema um pouco erótico, com um ou outro palavrão. Assumi como censura o facto de não ter recebido qualquer feedback. Senti que estava a desiludir os meus seguidores e importei-me com isso. Acabei por removê-lo alguns dias depois... admito que é um texto capaz de chocar uma parte considerável de leitores, mas tenho pena de que não esteja acessível.

Quero com isto dizer que quando não conhecia ninguém era fácil ser livre. Agora que o conheço a si que me lê e a ti que me lês, que construístes uma imagem a meu respeito, comecei a preocupar-me com aquilo que possais pensar de mim. Mesmo tapado com a máscara do Miguel Lucas que, com o passar do tempo e neste lugar, passou a ser a minha verdadeira cara. Tão ou mais real do que a minha própria cara. O medo de não ser amado, que toma conta de mim, já tomou conta do Miguel. Deste Miguel que inicialmente parecia ser tão destemido...

Poderei tentar vencer esta barreira, lutando contra estes medos infundados, mas também não sei se o quero fazer. O bem e o mal, o certo e o errado têm também um peso significativo. Seguir os impulsos, como o de escrever, por exemplo, sabe melhor se for feito em harmonia com a minha consciência.

 

 

 

Maria João

A Maria João é a dona de um restaurante que passei a frequentar quando mudei de emprego, há cerca de dois anos e meio. Ela e o marido.

É um restaurante pequeno, com cinco ou seis mesas, muito acolhedor. A Maria, como passei a chamar-lhe bastante tempo mais tarde, é daquelas pessoas que põe amor em tudo o que faz. É ela quem cozinha, e fá-lo muitíssimo bem. Mas não foi só por causa da gastronomia que engracei com o restaurante. Foi principalmente por me sentir muito bem recebido ali. Com a Maria sempre preocupada em que não me faltasse nada. Sinto-me bem ali e pelo menos uma vez por semana costumava ir lá almoçar. No tempo dos confinamentos, até ia mais vezes, para levar o almoço para o escritório.

A Segunda-feira era o dia em que acabava por lá ir mais vezes. Neste dia, não sei bem por que razão, costumo sentir uma grande tristeza, e almoçar ali era um bálsamo que me ajudava a suportar melhor o dia. Sentia aquele lugar como um porto de abrigo. Um pouco como ir a casa de uma avó. Sabia que a Maria me iria tratar bem.

Há pouco mais de dois meses o nosso escritório mudou de instalações e fiquei a cerca de 6 km deste meu refúgio. No dia em que fizemos a mudança fui lá tomar um café para me despedir, mas garanti que continuaria a ir lá de vez em quando. Na verdade, continuo a fazê-lo quase com a mesma frequência, mas agora, com um sabor mais especial. A Maria fica ainda mais contente por me ver.

Há tempos contratou uma nova empregada para servir à mesa, a Sara. Passaram várias por lá, mas nenhuma se aguentou muito tempo. A menina Sara, que é como a trato, já que ela me trata por Sr. Miguel, é muito alegre e competente, mas não é por causa dela que lá vou. Acho que tanto ela como a Maria o sabem. A Maria é apenas meia dúzia de anos mais velha do que eu, ou talvez nem tanto. Não poderia ser minha avó. O afeto que temos um pelo outro é o que me faz manter a assiduidade. Gosto de ver aquele brilhozinho nos seus olhos quando lá vou.

Na semana passada fui lá outra vez. Não tinha ido na anterior e não podia deixar o ano findar sem lá voltar. A Maria, como sempre, apareceu a meio da refeição para, com a sua doçura, saber se tudo estava bem. E é sempre um prazer quando isso acontece. Quando fui ter com a menina Sara para pagar, assomei-me à porta da cozinha para desejar Boas Festas à Maria. Parecia que já estava à espera deste momento. Tive vontade de a abraçar, mas não seria apropriado expressar este sentimento, muito menos com a sua ajudante ali ao lado olhando-nos de soslaio, nem com a menina Sara nas minhas costas. Mas o meu desejo acabou por ser parcialmente satisfeito quando a Maria sugeriu dar-me dois beijinhos e eu ter prontamente acedido. Contudo não reprimi a minha vontade de, ao beijar-lhe as faces, lhe cingir levemente a cintura. Não fui inocente como teria sido um neto. Nem tão pouco o foi a Maria. Mas o momento terminou. Apenas os sorrisos permaneceram. Despedi-me da menina Sara, que finge nada disto perceber, e fui-me embora afastando da ideia a hipótese sensata de deixar de ver a Maria.

 

 

 

Desabafo

A sensação de profunda tristeza persiste. É um sentir que nada vale a pena. No trabalho cobre-me como uma sombra a ideia de que sou demasiado remunerado para aquilo que produzo. Sinto que o meu patrão está desiludido comigo, que esperava outra coisa de mim, que talvez o nosso amigo comum me tenha sobrevalorizado ao falar-lhe de mim, antes de me contratar. Sinto que deseja livrar-se de mim. E esta ideia não me abandona. E nunca acho oportuno perguntar-lhe se está satisfeito com o meu trabalho. Na verdade, tenho receio de que a sua resposta venha confirmar a minha suposição, ou melhor, tenho a certeza de que irá. Assim, acabo por não a fazer, optando por me manter nesta dúvida amarga. Em casa tenho uma sensação parecida. Tenho a profunda convicção de que os meus filhos, principalmente o mais velho, me desprezam. Não têm orgulho em mim. Me acham um falhado, sem convicções, brando. Que é o que sinto ser e que, pensando bem, sou mesmo. Em relação ao meu Pai é fácil de constatar que gostaria que eu fosse de outra maneira e que ainda mantém a esperança de que eu mude, nunca me aceitando como sou, nem gostando de mim como sou, mas apenas daquele que gostaria que eu fosse. A minha Mãe é diferente. Acho que é mesmo desinteresse por mim. Não é desilusão. É nunca se ter iludido comigo.

E assim passeio o meu esqueleto, para um lado e para o outro, cumprindo as obrigações a que está sujeito todos os dias, quer sejam de semana ou de fim-de-semana. Sempre esperando pelo dia seguinte. À semana esperando que chegue o fim-de-semana e ao fim-de-semana esperando que chegue a semana. De dia esperando que chegue a noite e à noite esperando que chegue um novo dia. Para tudo se manter na mesma.

Para agravar a situação, a miúda do café despediu-se, a companheira de viagem mudou de destino e a Catarina deixou de olhar para mim. Tudo isto, que aconteceu ao mesmo tempo, me deixa mergulhado numa ainda maior solidão. O que me vai valendo é a Eva. Se não fosse o seu carinho acho que já me tinha afundado irremediavelmente. Quem me dera amá-la mais.

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Nota:

Os nomes aqui citados apenas são verdadeiros nas histórias que são fictícias.

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