São muitas as mulheres de quem não me esqueço. As mulheres que amo. Umas mais do que outras, mas todas com lugar cativo no meu coração. Umas conheci muito bem, outras menos e até há aquelas com quem apenas me cruzei fugazmente, mas que fazem dar por mim a ver se as vejo sempre que revisito os lugares onde as conheci. A maior parte destas mulheres já foi referida neste blog, mas restam algumas que, apesar de não se justificar escrever um texto sobre elas, por não ser original ou suficientemente interessante para o leitor, tiveram tanta ou mais importância do que as que foram citadas. Todas elas ficaram gravadas no meu coração, que mais parece a plateia de um auditório. Umas ocupam a primeira fila, outras lugares posteriores. Uma está, neste momento, no lugar central, mais iluminada. Há outra ao seu lado, que é impossível não ver, tal como todas as outras, da primeira à última fila. Por vezes trocam de lugar entre si, mas teimam em não sair deste auditório. Independentemente do lugar que ocupam, cada uma delas é capaz de me fazer esquecer momentaneamente todas as outras, como se o foco estivesse apontado exclusivamente para ela. Mas se este se desloca para outra eu quero-a com a mesma ou mais intensidade do que a anterior. Não se trata de ter uma eleita num determinado intervalo de tempo. O problema é serem várias a ocupar o primeiro lugar. Se pudesse hierarquizá-las seria mais fácil. Escolheria a primeira sacrificando as outras por um bem maior. Mas, estando tantas em pé de igualdade, não consigo ser fiel a apenas uma delas. Nem numa ilha deserta o seria, pois, este auditório vai comigo para todo o lado. Gostava de ter uma cama gigante e braços igualmente longos para poder ter comigo todas estas mulheres juntas num só abraço. Gostava de ter mil bocas para beijá-las todas ao mesmo tempo. Assim como gostava de ter mil mãos. Ou talvez duas mil, se não fosse pedir de mais... Mas, todas estas mulheres têm um fator em comum: nunca vivi com nenhuma delas e gostava de viver. Talvez seja por isso que se mantêm na sala. A única mulher com quem vivi, também esteve nesta plateia, mas já não a vejo por lá há muito tempo. Talvez esteja comigo no palco.
Entrei no hospital de manhã cedo para ser operado ao ouvido. Estava um pouco nervoso pois nestas alturas sou sempre assaltado por um certo medo de morrer. Encaminharam-me para um quarto onde substituiria a minha roupa por uma bata, para logo depois me deitar numa cama de hospital com rodas. Já deitado, fui conduzido através dos corredores até ao bloco operatório. Ia observando as portas de mola a abrir de par em par, as luminárias a desfilarem no teto e os rostos dos auxiliares que empurravam esta minha viatura. Já lá vão cerca de dez anos.
Quando me estacionaram junto ao bloco operatório fui visitado por uma enfermeira muito simpática e não menos bonita. Quis saber se eu estava bem antes de se dar início à cirurgia. Tentava perceber o que me dizia complementando o som do que proferia com os movimentos dos seus lábios, ao mesmo tempo que fixava os seus lindos olhos verdes. Fez-me as maldades que todos os enfermeiros fazem nestas ocasiões, mas souberam-me como carícias. Sentia-me calmo agora e com uma alegria muito grande por estar na sua presença. Estava simpático e confiante, por sentir que ela estava igualmente a saborear aquele momento. Não percebi o que me disse ao desejar-me boa sorte e pedi-lhe que repetisse. Rematei dizendo-lhe, ironicamente, que a audição não era o meu forte ao que simplesmente respondeu com um sorriso genuíno, que se estendia até aos seus olhos, como se me estivesse a dizer que isso iria deixar de acontecer. Afastou-se de seguida e só desejei que a cirurgia terminasse depressa para poder voltar a vê-la.
Isso não veio a acontecer. Nem o seu nome cheguei sequer a saber. E já nem dos traços do seu rosto me recordo muito bem. Mas jamais esquecerei esta linda enfermeira.
Quando venho a Lyon, janto muitas vezes numa pizzaria que tem um ambiente muito agradável, pratos variados e bem confecionados. Tem também quatro ou cinco empregadas que não são nada de se deitar fora. Há uma, que é italiana, que se destaca, pelo menos para mim, e a ela se deve esta minha regularidade. Há um problema grande de comunicação entre nós porque o meu francês é muito fraco e ela não fala inglês, mas ainda assim lá nos vamos entendendo. Não me dá confiança nenhuma, embora não seja antipática. Apenas uma vez, depois de eu ter estado três semanas sem lá ir, quebrou este seu gelo acenando-me da cozinha com um grande sorriso.
Estou agora a escrever estas linhas por causa do que aconteceu ontem. Estive mais de um mês sem cá pôr os pés, tendo regressado apenas na semana passada e, como não podia deixar de ser, fui jantar a esta pizzaria. Contudo, a nossa italiana devia estar de folga, pois não a vi nas duas vezes que lá fui. Mas ontem estava lá e, quando cheguei, julgo ter-lhe causado uma surpresa agradável dado que se expressou com grande alegria o que a fez entornar quase toda a espuma do canecão de cerveja que transportava. E isto sob o olhar atento de uma sua colega... fingi não notar e dirigi-me para a mesa que me disponibilizaram.
A partir daqui fui sendo atendido por uma e outra colega, mas nunca por ela. Por vezes passava por mim, mas ignorando-me sempre. Sem dúvida que estava fula por se ter manifestado daquela maneira, podendo ter dado a entender ter sentimentos que preferiria manter reservados ou até mesmo que não tem. Ainda assim, quando chegou a hora da sobremesa foi ela quem me foi atender. Perguntei-lhe se estava tudo bem com ela ao que me respondeu que sim, mas agora já com o rosto iluminado. Depois te ter pago ao balcão ainda nos cruzámos outra vez tomando ela a iniciativa de se despedir com um sorridente ciao. Quando achava que não me ligava nenhuma vim a descobrir que talvez não fosse bem assim. Definitivamente não percebo as mulheres. Gosta aquela que parece não gostar e não gosta a outra, que achava que gostava...
Esta foi a melhor refeição que tomei por estas paragens e hoje irei lá novamente. O mais provável é que ela lá esteja. E também muito provável é que seja a última vez que lá vou, pois confirmou-se há pouco que os nossos serviços não são mais necessários. Está a custar-me saber que não vou voltar a vê-la. E vai custar-me ainda mais despedir-me dela como se fosse lá voltar amanhã sabendo que talvez isso nunca mais volte a acontecer.
Ontem tive de viajar novamente para França, em trabalho. Quando cheguei à fila para o controlo de segurança, seguiam à minha frente três jovens muito alegres. Pelas suas feições e modo de vestir, apesar de muito europeu, deduzi serem oriundas de um país do norte de África. Uma delas chamou-me especialmente a atenção, não só por causa da sua beleza, como pelo seu feitio despassarado, pois quando cheguei ela estava a voltar para trás, alertada por um senhor, para buscar o casaco que deixara cair. E pouco tempo depois fui eu quem teve de o apanhar para lho devolver, o que agradeceu simpaticamente em inglês. Era sem dúvida a mais vistosa e alegre das três. Estava vestida de uma forma que a tornava muito sexy. Era alta, com longos cabelos pretos e a pele muito branca. Tinha muitas parecenças com a Catarina e talvez tenha sido esta a causa principal do meu interesse. Mas era, sem dúvida, uma beleza de mulher! Foi uma etapa da viagem muito agradável, que saboreei o melhor que pude sem, contudo, perder a cabeça.
Quando deixei o Raio-X já as três moças tinham seguido a sua vida alegremente. No átrio central ainda as vi, mas não fiz grande caso disso e segui para a zona onde supostamente iria embarcar. Cerca de meia hora mais tarde vi uma delas passar mesmo à minha frente e lembro-me de ter pensado: "queres ver que também vão para Lyon?". Isto ainda antes de estar definida a porta de embarque. É claro que quando cheguei à dita porta, entretanto indicada, relanceei o olhar para ver se as via, o que não aconteceu. Mas nem foram precisos três minutos para as ver chegar galhofeiramente. Só faltava agora que a mais bonita fosse ao meu lado no avião, pensei eu. Afastei de imediato este pensamento, pois só o facto de o ter tido tornava ainda mais improvável esta coincidência, como sempre se sucede.
Ainda assim, já no avião, sentado junto à coxia, esperava ansiosamente por quem iria caber ao meu lado. Como já quase toda a gente tinha embarcado, sabia que elas não tardariam a chegar. Aproximou-se de mim uma senhora, mais velha do que eu, que me fez pensar: pronto é esta que me vai calhar, afinal. Mas não. Sentou-se junto à janela deixando entre nós um lugar vazio. Logo depois apareceram as três raparigas e a minha desejada parou ao meu lado. Parou ela e parou o meu coração quando, olhando para o bilhete, me pediu licença para se sentar ao meu lado. Não queria acreditar na sorte que estava a ter e questionei-me sobre o que o que estaria o destino a reservar-me. Não foi preciso esperar muito para perceber que ele estava era a gozar comigo. Mas a gozar descaradamente, pois nem um minuto depois ela pediu-me licença outra vez e saiu, para se ir sentar duas filas mais à frente, num lugar vazio junto à janela... E a viagem prosseguiu, comigo entre um banco vazio e um corredor, adquirindo a monotonia a que estava condenada antes desta brincadeira do destino, cuja intenção, sinceramente, acho que nunca vou compreender...
O meu primeiro amor foi sem dúvida o mais importante e marcante da minha vida. Sentia um amor infinito. Por aquela que era a mais bonita mulher do mundo. A mais doce, a mais meiga e a mais serena de todas as mulheres. Junto dela sentia-me a mais feliz das criaturas. Sentia-me protegido, amado e confortado. Tinha uma verdadeira adoração por ela.
Quando andava na escola tinha três retratos seus na minha escrivaninha. Fotografias tipo passe, ainda a preto e branco, que emoldurei artesanalmente. Uma de quando tinha seis anos, outra da sua primeira comunhão e outra já quase adulta, em plenos anos sessenta. Ao ver estas fotografias conseguia sentir a sua presença mesmo quando estava ausente. A minha mãe era o tesouro mais precioso que tinha. Quantas e quantas horas passei sentado a seu lado, ao serão, naquele exíguo maple, enquanto víamos televisão. Todas as minhas dificuldades, angustias e medos eram compensados com este amor que dava e recebia da minha mãe.
Diz-se que não há amor como o primeiro e é verdade. Para a maioria de nós, homens ou mulheres, as nossas mães foram o nosso primeiro amor. Ensinaram-nos a amar e a ser amados. E ensinaram-nos como é difícil viver sem amor.
Hoje não sei o que sinto pela minha mãe. Já há muito tempo que o meu amor por ela se dissipou. Que se transformou num grande novelo de ressentimentos. Esta mudança deu-se quando ainda era adolescente. Quando percebi que não fazia os seus olhos brilharem como fazia o meu irmão. Que não a inquietava como inquietava o meu irmão. Que não a fazia sorrir como ele a fazia sorrir. O que senti nessa altura foi que tinha sido enganado durante anos. Que aquele amor que julgava receber não era verdadeiro. Percebi que não tinha grande valor para a minha mãe e isso foi como uma punhalada no meu coração, cuja ferida ainda não sarou.
Muitos anos se passaram, entretanto. Os sinais que me fizeram tirar aquelas conclusões perduraram e ainda hoje os detecto. Mas continuo a observá-los, ocasião após ocasião, talvez na esperança de concluir que estava equivocado.
No ano passado, no meu aniversário, a minha mãe ofereceu-me uma esferográfica. E o certo é que a utilizo muitas vezes. E guardo-a com os cuidados com que guardava as suas fotografias. E quando a estou a utilizar volto a sentir o que sentia quando era criança e por momentos esqueço a minha zanga.
Vi-a num relance, quando desinteressadamente levantei os olhos do telemóvel, por entre os muitos rostos que se me apresentavam naquela carruagem repleta. Não a achei muito bonita, mas tinha algo que me fez prontamente ajustar-me na cadeira, compor o casaco e dar um jeito ao cabelo. Só via a sua imagem das clavículas para cima, mas fiquei tão impressionado como se me estivesse a ser apresentada de corpo inteiro em toda a sua nudez. Olhei-a novamente. Uma e outra vez. Tentei compreender a razão de tão súbito e avassalador interesse sem, no entanto, o conseguir fazer.
Quando o comboio se aproximava da estação terminal, levantou-se. Meus queixos caíram perante uma mulher que, à maioria dos homens, estou certo, não faria voltar a cabeça. No entanto, tudo nela me inquietava e me fazia querer tê-la. Adorei os seus lábios serpenteados, os seus olhos grandes, o seu cabelo apanhado, a pequena papada no queixo, as manchazinhas que tinha na pele, a sua postura, o seu joelho ligeiramente para dentro, os seus seios comedidos e tão bem delineados, sob aquele top em malha, de mangas curtas. Tudo nela se tornou de repente para mim desejável e irresistível: fosse bonito, vulgar ou até dispensável. Ou seja, tudo nela se tornava admirável...
Quis saber mais dela tentando não lhe perder o encalço, mas ela meteu-se numa escada rolante que funcionava, ao contrário da minha, e foi-se afastando naquela amálgama de gente. As bichas para validar os bilhetes para o metro estavam intermináveis e, com azar outra vez, fui enfiar-me na mais lenta de todas. Quando consegui finalmente transpor aquela espécie de cancela, acelerei o passo o mais que pude, quase me pondo a correr, o que só não fiz por decoro, mas não cheguei sequer a vê-la.
O metro já estava cheio e ela só podia estar lá dentro. Ainda consegui entrar, mas não a vi nas imediações, até onde a multidão me permitia avistar. Ainda tentei furar pelas carruagens adentro, mas depois de conquistar apenas meia, desisti, sob pena de parecer um pai desesperado em busca do seu filho perdido. Em cada paragem tentei ver se a via na plataforma, mas sempre em vão. Até que a minha estação acabou por chegar, e com ela o fim inacreditável da esperança que tinha em voltar a vê-la. Pelo menos até a uma próxima viagem...
Ando em luta comigo mesmo e só me apetece dizer-te o quanto te amo! A pouca esperança que tinha de um dia poder partilhar a vida contigo está agora feita em cacos e ando a sentir-me devastado. Contudo, quando recordo aqueles momentos em que estivémos mais próximos, essa esperança ressurge e não consigo eliminá-la de vez.
Não te conheço assim tanto e por vezes pergunto-me se nos iríamos dar bem. Por outro lado, talvez eu não seja um bom partido para ti. Talvez não consiga amar-te como deveria e como tu merecerias. O certo é que, apesar destas interrogações, todo o meu ser nada mais anseia que não seja encontrar-te e estar contigo. Gostava de falar contigo frente a frente, sem reservas. De saber o que verdadeiramente sentes. Gostava de mostrar-te as minhas qualidades e defeitos para que, se me aceitasses, não mais aceitasses que não eu. Gostava de te esperar nem que seja até seres velhinha. Gostava de saber se, como eu, também ficas contente quando estou presente. Se também não descanças enquanto não souberes que já cheguei. Se também te sentes desolada quando constatas que não estou.
Se souber que gostas de mim, esperar-te-ei o tempo que for preciso. Dá-me um sinal, e essa espera será a mais feliz das minhas contrariedades. Se não sentes nada disto, gostava que mo desses a entender. Para que eu consiga extinguir este fogo definitivamente. Para ter apenas essa dor para suportar e deixar de ter a dúvida que me está a enlouquecer.
Já passaram mais de três meses desde que soube que a Catarina vai ser mãe. Pouco tempo depois escrevi-lhe uma mensagem de felicitações. Deixei expresso o afeto que sinto por ela e deixei claro que o facto de ter deixado de a olhar, que deve ter notado, nada teve que ver com desprezo (ideia que começou a apavorar-me, por tão equivocada que é). Simplesmente, a sua gravidez envolve uma terceira pessoa que não supunha na equação. E outra, indefesa, que vai precisar muito dessa pessoa... Ou seja, o meu direito, já de si ilícito, tornou-se agora proscrito...
Desde então só me cruzei com ela, frente a frente, por duas vezes. Em ambas me relanceou um olhar que me pareceu de súplica. Ainda não entendi bem o que possa estar a pedir-me. Estará a pedir-me desculpa? Como? se a culpa desta situação é toda minha? (quando reparei nela, já lá vão uns 10 anos, e comecei a demorar sobre si o meu olhar, ela nem sabia que eu existia. Eu teria 42. Ela 25. Não sei quantos anos mais tarde começou a corresponder às minhas investidas, timidamente umas vezes, mais descarada outras. Sei que não foi logo. Durante uns anos não se apercebeu de nada, mas seguramente há mais de 6 anos que jogamos este jogo). Talvez se sinta culpada por não ter posto mais cedo os pontos nos is e esteja agora a sentir pena de mim, que é um sentimento que me repugna. Prefiro acreditar que aquele olhar revela a sua angústia por ter tornado os nossos destinos ainda mais distantes. Lírico...
Apesar de não nos termos voltado a olhar, nem eu nem ela deixámos de frequentar os mesmos lugares. Mas esta contenção, mais do que nos afastar, deixa no ar uma tensão que nos torna ainda mais presentes no espírito um do outro. Pelo menos é o que acontece comigo e sinto que com ela se passa o mesmo. A ansiedade por tornar a vê-la é tão grande ou maior do que a que tinha antes. Já houve dias em que evitei encontrá-la, mas isso só fez com que o desejo de voltar a vê-la se tornasse ainda maior, só se apaziguando na sua presença. O mais sensato seria deixar de frequentar de vez estes espaços, mas vou, dia após dia, adiando esta resolução.
Talvez não seja amor o que sinto por ela. Caso contrário não me sentiria tantas e tantas vezes atraído por outras mulheres (e não me refiro a atracção física, que essa é fácil de identificar e de desvalorizar). Como quando encontro certa jovem, com narizinho de escorrega e uma covinha no queixo, que me deixa completamente aparvalhado... pior: com vontade de querer conquistá-la (curiosamente tem algumas parecenças com a Catarina...). Se amasse verdadeiramente a Catarina aconteceria isto? E como seria se vivesse com ela? Não me aconteceria o mesmo que me acontece agora com a Eva? Chego à conclusão de que, contrariamente a amar muitas mulheres em simultâneo, não amo é nenhuma. Estes sentimentos nada têm de amor. É puro egoísmo. Têm que ver com a minha satisfação. E como me entristece esta conclusão...
Estou cansado desta dependência! Quero evitá-la, mas não sei como. Por vezes desejava ser eunuco, mas quando isso imagino penso no quão enfadonha se tornaria a vida… Como viveria eu sem o sentimento mais bonito que experimento e que me parece ser o único pelo qual vale a pena viver? Mal por mal, mais vale travar diariamente esta luta, combater as minhas inclinações naturais, manter as rédeas bem curtas ainda que tudo na minha alma ordene que as solte.
Para tentar acalmar o meu espírito e minimizar as situações desviantes, sem ser tão radical, decidi tornar mais evidente a minha idade, uma vez que toda a gente me julga 6 ou 7 anos mais novo. Para tal decidi deixar crescer a barba e expor a imensidão de pelos brancos que já a compõem. Talvez ainda não me deem os 52 que já carrego, mas 45 penso que já não me dão. Assim, com um leque mais reduzido de potenciais interessadas, talvez seja mais fácil comportar-me melhor.
Quanto à Catarina, continuo a adorá-la e angustia-me pensar que esta medida poderá afastá-la ainda mais de mim, mas tenho de me convencer de que tenho que abrir mão dela definitivamente, o que não está a ser nada fácil.
Converso com ela há muito tempo. Raro usamos palavras, somente o olhar. Digo-lhe bom dia, boa tarde ou boa noite. Pergunto-lhe como está. Digo-lhe como é linda. Digo-lhe como a admiro, como a amo. Digo-lhe o quanto desejava tê-la nos braços.
Ela também fala comigo. Diz-me o quão lisonjeada se sente. Diz-me que se sente feliz. Procura-me. Diz-me que também me ama. Mais claramente do que com palavras. Estas podem mentir. O olhar não.
Por vezes temos conversas de circunstância. Mas já tivemos conversas muito longas. Onde apenas dissemos o nosso amor. O que só com o olhar se pode dizer durante tanto tempo. De forma longa, mas não repetitiva. Outras vezes, muitas é certo, desviamos o olhar. Por causa das circunstâncias. Por nos estar interdito amarmo-nos.
Agora ela vai ser mãe e eu já não sei o que pensar das conversas que tivémos. Talvez me tenham mentido os meus olhos, afinal. Agora não pode haver mais conversas e os meus olhos enchem-se de lágrimas.
Confesso que estava um pouco ansioso por reencontrar a Helena depois de um ano sem a ver. Ela é muito bonita. Tem uns olhos de cristal, azuis, que estão sempre a sorrir ainda que o seu semblante se apresente mais sério, o que não é raro tendo em conta os seus azeites. Não resisti descer até à água, fingindo querer refrescar-me, para cumprimentar os seus pais e aproveitar, objetivo principal, para cumprimentá-la também, quando subisse, ao passar na sua palhota. Quando o fiz só lá estava a irmã com as suas amigas. Não reparei que na palhota ao lado a jovem que estava aparentemente a dormir, de barriga para baixo, era ela. Cumprimentei a irmã, que me respondeu a contragosto, e quando me dirigia para a minha palhota, três casas ao lado, na fila seguinte, a Helena me interpelou, de um salto, para me cumprimentar. Tentei refazer-me do calafrio o mais rapidamente possível para disfarçar ao máximo todas as emoções que se me afloraram naquele instante, ao mesmo tempo que procurava palavras para lhe dizer que parecessem adequadas ao reencontro entre um senhor já entrado e uma amiga da sua filha… E tudo isto com uma plateia imensa, de gente conhecida, a observar a cena, parecendo já adivinhar o enredo que sobremaneira fui tentando camuflar. Acho que disfarcei bem, mas a minha alegria e atrapalhação não escaparam certamente à astucia da Helena. Ela é muito mais do que linda… Que sensação! Que miúdo eu sou. Como pode uma mulher de apenas vinte anos ter este efeito num homem já de meia-idade? Fui para a palhota e sentei-me para me recompor, deixar o coração voltar ao seu lugar, depois de ter descido ao estâmago e subido à garganta. Mais calmo, decidi descer até à água para me banhar um pouco, bendizer a vida, apreciar a beleza da praia e descansar o olhar sobre a Helena apenas um pouco mais. Como se este presente não bastasse, tive a imerecida sorte de poder vê-la descer para também se banhar e ainda tê-la como companhia por alguns minutos, até decidirmos todos voltar para os nossos cómodos. Talvez ela não saiba que me fez ganhar as férias. E eu também não sei que raio de efeito tive sobre ela. Mas deixem-me acreditar que este nosso encontro teve algo que ver com aquele brilhozinho que vi no seu olhar… E é assim que vai vivendo um incorrigível canalha.